"Impressões de uma antropóloga carioca descobrindo o Marrocos" Isabel Travancas, 2018.

Dia complicadinho... não durmo com a tosse que a infecção respiratória que tua sobrinha me legou e depois o teu pai tenta dar cabo da fechadura da porta da rua.. não faço grande coisa para além de tossir e repor o sono e telefonar à minha avó, mais ainda leio o relato das aventuras marroquinas da tia Isabel. Respondo-lhe assim:

" Li-te (finalmente),
só tu para me fazeres comentar impressões (só o faço porque tu és adorável!) “impressões” foi muito bem escolhido porque foste desligada e ainda bem e assim é que tem de ser quando viajamos e por isso discordo logo do título: quais “impressões de uma antropóloga carioca” é mais “impressões da Isabel, uma carioca que por acaso é antropóloga”, não estou a pegar contigo! Eu nunca viajo como antropólogo, já basta o que basta! Viajante é condição que baste.
Contexto: duas idas a Marrocos e três à Tunísia, sozinho e com a Sónia, na condição de “gringo” solteiro e na condição de marido branco acompanhado (à vez) por uma ou duas brancas desavergonhadas que recusavam o hijab... o romantismo orientalista já se foi há uns tempos... Na Tunísia, por causa da minha sogra na embaixada ainda nos tempos do Ben Ali, também tivemos direito a um “guia” permanentemente de ray-bans que mostrava o interior da carteira aos bófias provincianos das barreiras de estrada e era um arzinho de simpatia que se lhes dava; também enjoei o tajine! Só para perceberes donde estou a partir.
Para um tuga, homem e sozinho, Marrocos parece sempre uma extensão atrasada do sul de Portugal: as oliveiras e a música, a machismo de lei e a comida (se tirares o porco, que é central no Alentejo), a arquitectura de barro e cal e a maneira como as velhas atam os lenços à cabeça, a subserviência manhosa aos turistas e a corrupção fácil e barata das autoridades, o lento mas inexorável avançar da desertificação; sentes-te muitas vezes num Portugal exagerado.
Os momentos de ser esfolado no souk (onde foste tu apanhar o “zoco”?), andar perdido nas medinas, a relação ambivalente com os guias espontâneos que parece que saem do chão, os mergulhos de classe entre os arruamentos posh e os bairros do povão onde só se acaba se nos perdermos (onde dum momento para o outro as poucas placas que sobram deixam de falar francês), são tudo momentos muito reconhecíveis e nem sequer começam a explicar porque é que eu digo (rosno) sempre que “para o Magrebe já dei... faltam os templos do Egipto e mesmo assim a ver vamos...”.
No limite, e não querendo parecer mais papista que o papa, o que me “resolveu” o Magrebe de vez foi a prevalente, hegemónica, agressiva misoginia... a lenta progressão duma certa leitura do Islão foi-se sentindo a pouco e pouco (tu falas em burqas em Marrocos, que eu nunca vi, mas na Tunísia foi-se sentindo o aperto social, lento mas constante, dum wahabismo cada vez mais asfixiante nos últimos dias do Ben Ali), se achas que os cafés de Tétouan não são para as moças havias de ver os de Djerba na época baixa... Agora que me fazes pensar nisso acho que encontrei a única coisa que deixava fazer a um filho e recusava à Madalena: uma viajem solitária ao Magrebe. Quando falas da “kindness of strangers” arranhas bem a ideia da sorte que tu e a Helena tiveram em se cruzarem só com os Marlon Brandos com que se cruzaram.
E no entanto não chega... o retrato sombrio que tenho do Magrebe não apaga os calhaus encarnados do deserto de pedra entre Agadir e Marraquexe que fizemos num mercedes desconjuntado; a planície de sal a perder de vista de Chott el Djerid; as dunas vistas do alto dum dromedário enquanto evoluíamos lentos e silenciosos (um grupo de cinco), entre o céu e uma areia cheia de lacraus, muito fora de Tozeur... tão fora que se nos largassem não saberíamos onde haveria água ou sombra em dezenas de quilómetros fosse em que direção fosse...
como dizia o Lawrence: gosto do deserto porque é limpo.
Bendita, ainda bem que gostaste de Marrocos, eu também.. às vezes. "

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