“Outra Língua” Keli Freitas & Raquel André, Teatro Nacional Dª Maria, 2022.

Ora ora esta é guedelhuda...

Diz-me a tua maninha: tenho de ir ver isto por trabalho, duas brasileiras, uma portuguesa e uma angolana a discursarem sobre língua; e eu yá meu, ‘tou nessa logo se vê... e logo vi.

Vamos por partes: eu diverti-me, eu gostei; mais, estou a adorar esta trend nacional que não sei como descrever senão como “teatro de revista da intelligentzia”, cuja génese eu remeto para as “Obras Completas de William Shakespeare em 97 minutos” (talvez até ao Mário Viegas com o “Europa Não, Portugal Nunca”) e donde não tiro o teu “Morte da Sereia”; se há grupo que precisa de se rir (especialmente de si próprio) é a cronicamente raquítica intelectualidade nacional.

Mas há merdas que não.

Primeiro e pequenino: eu para chegar à sala estúdio Rey Colaço / Robles Monteiro do Teatro Nacional tenho de passar por uns monumentais bustos do Garrett, da Emília das Neves, do Actor Taborda, não estou à espera de ínclita perfeição, mas metade das actrizes perderem linhas e uma delas simplesmente desistir com um “não, não é nada disso...” virar as costas à plateia e ler as linhas da legendagem para os surdos parece-me um bocadinho de à vontade a mais... não é nada do outro mundo, mas mesmo assim não estamos a assistir ao “Rapaz de Bronze” pela secção infantil da Sociedade Cultural e Recreativa da Carregueira.

Segundo e maior: há um problema de tese com a tese da peça. Passo Um – uma língua é algo tão estrutural que predetermina a mundividência de quem a usa para pensar (aqui absolutamente de acordo, tive de crescer um pedaço para perceber que a categoria “preto” que os brancos à minha volta usavam era fluída ao absurdo, para não dizer nada de “cigano” ou “maricas”); Passo Dois – usar a língua responsavelmente é um dever (totalmente de acordo, por isso é que à criança descrevo o Manel e Jaquim que se amam como “casados” e não como “pervertidos que vivem juntos”); Passo Três – mudar o uso da língua equivale a mudar a estrutura..... aaaah pois, pois, pois, pois não, não, dificilmente.

A língua reflete o racismo, misoginia e homofobia da estrutura (sim!) mas mudar a linguagem vai mudar a estrutura? São vasos comunicantes ou causa e consequência? Vaso comunicante para o indivíduo (mudar como falo muda como penso), causa e consequência para o colectivo: todos os amigos da Keli podem dizer “casamento” em vez de “casamento gay” e isso não vai acabar com a homofobia nem sequer dentro do grupo de amigos da Keli (porque a linguagem também tem uma dimensão performativa de que estranhamente esta malta do teatro se esqueceu) 

é esperar que a cauda abane o cão

... seja como for isto é muita conversa para pouca peça.

A coisa é gira (aqui e ali um bocadinho vacuamente preachy mas pronto), claramente do lado certo da História com H grande, divertidíssima do princípio ao fim (com momentos aqui e ali absolutamente brilhantes: o primeiro acto; quando fazem o público rir com o analfabetismo popular para a seguir nos envergonhar com o nosso classismo; a língua portuguesa personificada na Tita Maravilha...); mas é uma peça que (como diria a tia Isabéu) “se acha”.

E se acha sem grande chicha para a pose.


 

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