HISTÓRIA DAS CIVILIZAÇÕES CLÁSSICAS 1 - A democracia ateniense.

Objetivos

Destacar as principais componentes da democracia ateniense.

De acordo com o estudo efetuado sobre a democracia ateniense, comente o texto que se segue:

«Contudo, a «democracia» apresenta falhas. É verdade que os cidadãos têm direito, real ou ilusório, a uma estrita igualdade. Mas só tem direito ao título de cidadão uma parte dos habitantes da Ática (por volta de 431, 172 000 cidadãos, incluindo famílias, ou seja, 40 000 pessoas numa população global de 315 000 pessoas). A democracia é privilégio deste grupo que domina uma massa de estrangeiros (metecos) e de escravos. Ora, o seu número relativo não cessará de crescer nos séculos que vão seguir-se. Mais ainda, Atenas explora, pela sua força, os aliados do mar Egeu, da liga de Delos. Tornou-os seus súbditos, seus tributários. E há ainda a exploração dos mercados longínquos para os quais exporta cerâmica, tecidos e azeite, a fim de obter o trigo que lhe permite viver. Em suma, Atenas beneficia de muitos privilégios e domina outros. O suficiente para J. L. Borges não ter qualquer razão quando escreve: ‘’Atenas foi uma imagem rudimentar do Paraíso.’’ Os paraísos na Terra, sempre rudimentares, nunca estão ao dispor de toda a gente.»

Fernand Braudel, Memórias do Mediterrâneo, Pré-História e Antiguidade, Lisboa, Terramar, 2001, p. 268. 

 

TRABALHO / RESOLUÇÃO: A democracia ateniense.

 

Olhar para a democracia ateniense da idade clássica; essa originalidade constitucional filha em partes iguais da ideia de pólis, o conselho de cidadãos elevado a unidade política (diferente da nossa etnia ou classe)[i], e da primazia duma lei escrita[ii], emanação da vontade da pólis[iii]; é naturalmente, como faz Braudel neste trecho[iv], olhar-lhe para as insuficiências quando comparada com os nossos próprios regimes.

Entre sistemas de reis divinos, donos de tudo e do todo[v]; e aristocracias cavaleiras[vi] a dominar a política pela força da capacidade militar e da economia terratenente; em Atenas uma alteração produtiva criou uma contradição social. A alteração foi a reorganização económica em torno dum colonialismo expansionista e do comércio do produto da vinha e oliveira[vii], e a contradição o resultado da ascensão duma classe de plutocratas comerciantes[viii], imensamente ricos mas sem poder político formal. Isto ao mesmo tempo que a adopção da hoplitia fomentava necessariamente uma psicologia colectiva de cooperação e responsabilização (empoderamento, diríamos hoje) entre o cidadão comum[ix].

Da negociação desta tensão entre os plousioi (os “bons”) e o resto da dêmos resulta a seisachtheia de Sólon[x], o “alijar do fardo” que por mais meramente reformista que fosse não deixou de significar o fim da infâmia da servidão por dívidas, o acesso ao poder pela dêmos (ainda que condicionado por classes de riqueza[xi]) com o fim do monopólio dos cargos públicos pelos eupátridas (os “bem-nascidos”) e o acesso irrestrito à justiça com os tribunais de apelo da Helieia[xii]. Por mais que os gregos reduzissem elegantemente esta transformação à palavra eunomia (“boa ordem”), a nós é nos difícil não ver nesta liberdade sob a lei, neste deslocar do magistrado de senhor da lei para seu servidor, os fundamentos do nosso estado de direito.

Posteriormente, com a segunda ronda de reformas de Clístenes (a reforma territorial e tribal, que resulta num aumento da base de cidadãos, a nova Boulê de 500, o reforço de poderes da Ecclesia, a criação da Estrategia e a lei do ostracismo[xiii]), os avanços de Elfiates (instituição da docimasia e esvaziamento do poder do Areópago[xiv]) e os acrescentos sob Péricles (abertura à participação dos mais pobres com a mistoforia[xv]); chegamos a essa democracia ateniense que reconhecemos, e às vezes romantizamos:

Uma Ecclesia soberana, expressão física da pólis, com direito e dever de participação por todos os cidadãos; com poderes legislativos e judiciais teoricamente ilimitados; a instância final de democracia directa para o debate, aceitação, recusa ou emenda dos projectos de lei preparados pelo executivo[xvi]. Uma Boulê de 500, sorteados das 10 tribos (dois mandatos, não consecutivos, por cidadão no máximo), para preparar a assembleia e as propostas de lei a apresentar[xvii]. A Helieia, o recurso judicial final, com 6000 cidadãos sorteados igualmente de entre as tribos como júri e juízes[xviii] e aberta a casos apresentados por qualquer pessoa (incluindo mulheres, metecos, escravos e crianças[xix]). E uma magistratura dividida entre Arcontes e Estrategos (dois de cada por cada uma das 10 tribos), os primeiros eventualmente sorteados e os derradeiros eleitos, e passíveis de reeleição[xx].

No fim ficamos com um estado marcado não só pela eunomia de Sólon, mas também pela isonomia (“igualdade perante a lei”[xxi]) de Clístenes, e pelas isegoria (“liberdade de expressão”[xxii]) e isocracia (“igualdade de acesso ao poder”[xxiii]); e um caso único no mundo antigo.

Agora podemos ver este arranjo constitucional com o olhar romantizado que Braudel aponta a Borges[xxiv], amiúde cristalizado no lugar-comum do “berço da democracia”; ou com um bem mais severo que sublinhe o carácter de aristocracia alargada[xxv] duma democracia radicalmente misógina, xenófoba e esclavagista[xxvi], um regime que aplicava a lógica de numerus clausus à humanidade[xxvii] com tal ferocidade que, de todos humanos da cidade, só 10 a 15% chegavam à dignidade de polítes, de humanos plenos[xxviii].  E estes olhares, por mais antagónicos que nos soem, são antes de mais complementares; faltando talvez a adenda do contexto (com uma Esparta oligárquica dum lado e uma Pérsia autocrática do outro) e da não linearidade do processo (as tiranias dos Pisístratos, a tentativa de oligarquização de Iságoras[xxix]) para conseguirmos uma visão complexa e justa da originalidade nascida na ágora ateniense: a ideia de um governo de todos para todos.

E, finalmente, talvez a plena consciência das evidentes insuficiências da Atenas de Péricles, a gritante dissonância dum regime que se reclamava dum ideal democrático, ao mesmo tempo que excluía e silenciava 85 a 90% da população da cidade, nos empurre à reflexão sobre as insuficiências dos nossos próprios regimes, herdeiros dessa Atenas. Quem entre nós, passados 2500 anos do “berço da democracia”, são os metecos sem voz, sem isonomia, sem isocracia?

 


 

Bibliografia

Livros

BRAUDEL, Fernand – Memórias do Mediterrâneo, Pré-História e Antiguidade. Lisboa: Terramar, 2001 [1998]. ISBN 978-972-710-286-0.

FERREIRA, José Ribeiro – Civilizações Clássicas I Grécia. Lisboa: Universidade Aberta, 1996. ISBN 978-972-674-662-1.

TAVARES, António Augusto – Civilizações Pré-Clássicas. Lisboa: Universidade Aberta, 1995. ISBN 972-674-141-6.

Capítulos de livros

BORGES, Jorge Luis – A esfera de Pascal. in – Obras Completas 1952 – 1972. s.l.: Teorema, 1998 [1951]. pp. 12 – 14. ISBN 973-695-351-0 (II vol.).

SARTRE, Jean-Paul – Préface à l’édition de 1961. in Fanon, Frantz – Les damnés de la terre. Paris: La Découverte & Syros, 2002 [1961]. pp. 17 – 36. ISBN 978-2-7071-4281-8.


[i] FERREIRA, J.R. – Civilizações Clássicas I Grécia, pp. 75 – 76.

[ii] FERREIRA, J.R. cit. i, p. 104.

[iii] FERREIRA, J.R. cit. i, p. 77.

[iv] BRAUDEL, F. – Memórias do Mediterrâneo, Pré-História e Antiguidade, p. 268.

[v] TAVARES, A.A. – Civilizações Pré-Clássicas, p.97.

[vi] FERREIRA, J.R. cit. i, p. 93.

[vii] FERREIRA, J.R. cit. i, p. 137.

[viii] FERREIRA, J.R. cit. i, p. 97.

[ix] FERREIRA, J.R. cit. i, pp. 100 – 103.

[x] FERREIRA, J.R. cit. i, p. 136.

[xi] FERREIRA, J.R. cit. i, p. 137.

[xii] FERREIRA, J.R. cit. i, p. 138.

[xiii] FERREIRA, J.R. cit. i, p. 141.

[xiv] FERREIRA, J.R. cit. i, p. 147.

[xv] FERREIRA, J.R. cit. i, p. 148.

[xvi] FERREIRA, J.R. cit. i, p. 150.

[xvii] FERREIRA, J.R. cit. i, p. 151.

[xviii] FERREIRA, J.R. cit. i, p. 152.

[xix] FERREIRA, J.R. cit. i, p. 138.

[xx] FERREIRA, J.R. cit. i, p. 153.

[xxi] FERREIRA, J.R. cit. i, p. 141.

[xxii] FERREIRA, J.R. cit. i, p. 153.

[xxiii] FERREIRA, J.R. cit. i, p. 154.

[xxiv] Até algo injustamente, já que Borges só cita Robert South, e mesmo este usa Atenas mais como prova de degenerescência do que como ideal, v. BORGES, J.L. – A esfera de Pascal, p. 14.  

[xxv] FERREIRA, J.R. cit. i, p. 157.

[xxvi] FERREIRA, J.R. cit. i, p. 158.

[xxvii] SARTRE, J.P. – Préface à l’édition de 1961, p. 23.

[xxviii] FERREIRA, J.R. cit. i, p. 80.

[xxix] FERREIRA, J.R. cit. i, pp. 139 – 140.



 

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