HISTÓRIA DA IDADE CONTEMPORÂNEA 1 - A crise do Antigo Regime e a Revolução Francesa.
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Trabalho a desenvolver
Escreva um pequeno ensaio sobre a crise do Antigo Regime, o espoletar da Revolução Francesa, as continuidades e ruturas entre a sociedade do Antigo Regime e a sociedade saída do processo revolucionário, tomando como ponto de partida as seguinte frases:
"A revolução emendada, revista pelo consulado e pelo império, concretizou umas tendências anteriores e constitutivas da monarquia. A ruptura não é, em todos os aspectos, tão impressionante como se nos afigura ou como a historiografia a apresenta. Encontram-se de ambos os lados da ruptura de 1789 elementos de continuidade. A monarquia, a seu tempo, empreendera um esforço paciente de uniformização e de unificação para aumentar a centralização, reforçar a coesão, reduzir os particularismos. A revolução, beneficiando de um impulso novo e da adesão da nação, pôde levar a bom termo este esforço e varrer as últimas resistências."
RÉMOND, René - Introdução à História do nosso tempo. Do Antigo Regime aos nossos dias. 4.a ed. Lisboa: Gradiva, 1994, p. 121.
TRABALHO / RESOLUÇÃO: A crise do Antigo Regime e a Revolução Francesa.
Não é sem pretextos que René Rémond repetidamente[i] sublinha as continuidades entre o Antigo Regime e o que resulta dos sobressaltos da Revolução Francesa, por mais contraintuitiva que esta insistência à partida nos pareça. A verdade é que, não só não podemos reduzir a motivação para o que acontece a partir de 1789 à vontade de mudança[ii] como, em grande medida, veremos a Revolução a cumprir, finalmente, o projecto fundamental, encetado mas não concluído, do estado clássico do absolutismo real: o controlo dos homens e a ligação ao solo[iii].
Mas recuemos à espoleta da mudança; sendo bem verdade que é a concorrência duma conjuntura muito específica com factos longamente estruturais[iv] que vai acender o pavio, comecemos por estes últimos. Se atentarmos às componentes essenciais do Antigo Regime na França da década de 80 do séc. XVIII: feudalidade, estrutura social em ordens e absolutismo real, vemos porque Vovelle lhes descreve o equilíbrio como periclitante[v]. Numa vida social ainda totalmente submetida às leis naturais[vi], economicamente dependente duma agricultura dominante essencialmente alimentar, um sector que ocupa 85 a 90% dos homens, não só a França mas toda a Europa do Antigo Regime é um vasto cenário marcado por crises de subprodução e fome endémica, que por sua vez arrastam crises pestíferas, conjugando a mortalidade cíclica com picos de mortalidade epidémica e resultando numa demografia de tipo antigo, uma demografia de vazios[vii]. Esta fome crónica e estrutural que afecta a esmagadora maioria da população[viii], avançando agora ao conjuntural, será levada ao paroxismo pelas más colheitas de 1788 e 1789[ix], causando uma alta de preços duns 150%, que consequentemente elevará o desespero popular[x].
Mas voltando à estrutura, a nobreza francesa, castificada mas fundiariamente pobre (quando comparada com congéneres europeias) não tem a possibilidade da nova agricultura à inglesa[xi] e por isso toma de assalto a alta Igreja e o Estado[xii], monopolizando bispados e parlamentos, o oficialato e as intendências; enquanto desenterra velhos direitos, sisas e impostos feudais para espremer ao máximo os já escassos rendimentos do campesinato[xiii]. Uma nobreza descapitalizada, tanto mais arrogante quanto menos a ficção das ordens tapa a realidade das classes[xiv], que empurra para fora do Estado uma burguesia ascendente, cada vez mais rica e autoconfiante, no que só exacerba antagonismos, lentamente empurrando tensões a revoluções[xv].
Entretanto, as finanças do Estado, da sua condição de crónico défice[xvi], descambam no que Schama chama uma crise terminal[xvii], com a impossibilidade de refinanciamento por falta de confiança do mercado contra a antecipação de receitas futuras[xviii]; Versalhes pode ser a montra do luxo obsceno, mas na realidade não representa mais do 6% da despesa em 1788, mesmo ano em que metade do orçamento é dedicado ao serviço da dívida[xix]. E esta dívida, descendo novamente ao conjuntural, tem um nome e esse nome é América. A vitória, que se revelaria extremamente pírrica, da Coroa francesa sobre os interesses ingleses no Novo Mundo custou-lhe, entre 1776 e 1783, uns fabulosos 1,3 mil milhões de libras, 91% dos quais obtidos via crédito[xx]. E é claro que o débil e incoerente sistema fiscal francês[xxi], marcado pela isenção em cima e pela evasão em baixo[xxii], não consegue dar resposta.
Desesperam-se Turgot e Necker, mas entre a pusilanimidade de Luís[xxiii] e a reacção feudal dos privilegiados[xxiv], a possibilidade de reforma transforma-se em bloqueamento sociopolítico[xxv]. À lenha do desespero popular, a burguesia fornece o catalisador dum programa armado pelas Luzes[xxvi], a intransigência dos Artois da corte chegará o fósforo e acontece o que nunca aconteceu antes[xxvii].
Agora, na tentativa de identificar continuidades e rupturas entre Antigo Regime e Revolução, mais do que analisar a evolução da frágil aliança entre a massa do povo e os dirigentes burgueses (que a seu tempo excluirá tanto sans-culottes de Paris como católicos da Vendeia)[xxviii], importa determinar quando é que a Revolução termina, pergunta que está longe de ter uma resposta inequívoca: olhamos Napoleão como herdeiro ou coveiro?[xxix] Assumindo o discutível da escolha, procedo pondo-lhe o término na definitiva restauração bourbónica pós-Waterloo.
A primeira e enorme ruptura acontece logo no Jeu de Paume: o Terceiro Estado arrogar-se a Assembleia Constituinte desloca a fonte de soberania de Deus, através do Rei, para o Povo, identificado com a Nação[xxx]. O Povo passa a ser tudo, e do nada que era politicamente, passa a ser alguma coisa, o abade Sieyès teve de sorrir[xxxi]. Esta ideia nova de Nação é a base de todo o patriotismo moderno e substituirá o lealismo dinástico[xxxii]; poderá ser só Luís-Filipe a assumi-lo, mas Luís XVIII já será muito mais um Rei dos Franceses do que propriamente um Rei de França. Esta noção unitária de Nação fará também tábua rasa dos particularismos locais e regionais impondo a igualdade civil entre cidadãos[xxxiii] (se relevarmos a distinção entre activos e passivos da Constituição de 1791), e possibilitará as reformas fiscal do Directório e administrativa do Consulado[xxxiv], a levée en masse do ano II e a lei Jourdan do ano VI[xxxv], e onde podemos ver finalmente, como Rémond no excerto, a concretização do estado centralizado, coeso, unificado e uniformizado com que sonharam Richelieu e Olivares.
Podemos olhar, ao invés, como Rémond também faz, o social como alvo duma renovação integral[xxxvi]; mas até que ponto os cahiers de doléances perdem o sentido em 1815? A condição dos camponeses franceses podia ser a inveja da Europa oitocentista, mas antes de mais pela abolição do feudalismo, a fome no campo não desaparece sob a nova aristocracia imperial, a aristocracia do mérito e do talento[xxxvii]. A desigualdade é preservada até na letra da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão[xxxviii], isto para não falar na resoluta defesa do carácter sagrado e inviolável da propriedade, nos revolucionários avanços e recuos quanto à escravatura nas colónias da República e na imobilidade da condição feminina, Olympe de Gouges guilhotinada e o Código Civil a estabelecer (no que será modelo para o Direito continental) o princípio da autoridade do pai em casa e do patrão na oficina, neste último caso com um livrete de trabalho que mantém tal desproporcionalidade na relação laboral que é Rémond, e não Hobsbawm, a falar em servidão disfarçada[xxxix]. Mesmo quando falamos do salto da Política, de algo controlado e decidido por uma minoria restrita, para uma verdadeira res publica que envolve toda a Nação[xl], olhar para os números tempera necessariamente a eloquência democrática: duma população estimável entre 24 e 27 milhões de almas[xli] nas eleições da República podem votar pouco mais de 4 milhões e em 1791 votam menos de 2, em 1795 pouco mais de 1[xlii]; e se no Império os cadernos se abrem a 7 milhões, nunca exercem esse direito mais do que 3,6 milhões, em 1815 pouco mais de milhão e meio[xliii].
Mas, não obstante continuidades e insuficiências anacronicamente avaliadas, o processo revolucionário é o grande abalo, a grande ruptura na continuidade histórica europeia[xliv]. O que era discurso girondino de libertação universal em 1792[xlv], nos oitocentos vai ser, inspirado por uma liberdade que já não se reduz ao antónimo de escravatura e de um vocabulário que inventa a “nação”[xlvi], para além dum cortejo de levantamentos de “afrancesados”[xlvii] (e as tricolores do nacionalismo húngaro, do risorgimento italiano ou da unificação alemã não nos deixam mentir), um verdadeiro palco de ensaios e tentativas de, como diria Furet, transformar a imaginação duma sociedade em tecido da sua história[xlviii].
As Trois Glorieuses, a II República de Lamartine e o II Império de Napoléon le Petit tentam curar com receitas já velhas problemas muito novos; a bandeira dos fédérés de 1871 já será vermelha, a imaginação da sociedade já ia mais além.
Bibliografia
CHAUNU, Pierre – A Civilização da Europa Clássica. vol. I. Lisboa: Editorial Estampa, 1993 [1966].
CHAUNU, Pierre – A Civilização da Europa das Luzes. vols. I e II. Lisboa: Editorial Estampa, 1995 [1971].
FURET, François – Penser la Révolution Française. s.l.: Gallimard, 1978.
HOBSBAWM, Eric – The Age of Revolution 1789 - 1848. New York: Vintage Books, 1996 [1962].
MEURIOT, Paul – La population et les lois électorales en France de 1789 à nous jours. in Journal de la Société de Statistique de Paris. Vol. 57. Paris: Société de Statistique de Paris, 1916, pp. 157 – 178.
http://www.numdam.org/item/JSFS_1916__57__157_0/
RÉMOND, René – Introdução à História do Nosso Tempo – do Antigo Regime aos Nossos Dias. Lisboa: Gradiva, 1994 [1974].
SCHAMA, Simon – Cidadãos – uma crónica da Revolução Francesa. Silveira: Book Builders, 2021 [1989].
SIEYÈS, Emmanuel Joseph – Qu’est-ce que le Tiers État? Paris: Éditios du Boucher, 2002 [1789].
VOVELLE, Michel – Breve História da Revolução Francesa. Lisboa: Editorial Presença, 1994.
[i] RÉMOND, R. – Introdução à História do Nosso Tempo, p. 114.
[ii] FURET, F. – Penser la Révolution Française, p. 195.
[iii] CHAUNU, P. – A Civilização da Europa Clássica, vol. I, p. 41.
[iv] RÉMOND, R. cit. i, p. 92.
[v] VOVELLE, M. – Breve História da Revolução Francesa, pp. 11 – 13.
[vi] CHAUNU, P. cit. iii, p. 200.
[vii] CHAUNU, P. cit. iii, p. 189.
[viii] RÉMOND, R. cit. i, p. 89.
[ix] HOBSBAWM, E. – The Age of Revolution, pp. 60 – 61.
[x] VOVELLE, M. cit. v, p. 17.
[xi] CHAUNU, P. – A Civilização da Europa das Luzes, vol. I, pp. 192 – 193.
[xii] CHAUNU, P. cit. xi, vol. II, p. 34.
[xiii] HOBSBAWM, E. cit. ix, p. 57.
[xiv] VOVELLE, M. cit. v, p. 13.
[xv] RÉMOND, R. cit. i, p. 90.
[xvi] RÉMOND, R. cit. i, p. 88.
[xvii] SCHAMA, S. – Cidadãos, p. 89.
[xviii] SCHAMA, S. cit. xvi, p. 106.
[xix] HOBSBAWM, E. cit. ix, p. 58.
[xx] SCHAMA, S. cit. xvi, pp. 89 – 90.
[xxi] VOVELLE, M. cit. v, p. 14.
[xxii] SCHAMA, S. cit. xvi, p. 96.
[xxiii] RÉMOND, R. cit. i, p. 91.
[xxiv] HOBSBAWM, E. cit. ix, p. 56.
[xxv] CHAUNU, P. cit. xi, vol. I, p. 194.
[xxvi] CHAUNU, P. cit. xi, vol. II, p. 34.
[xxvii] RÉMOND, R. cit. i, p. 85.
[xxviii] FURET, F. cit. ii, pp. 196 – 198.
[xxix] RÉMOND, R. cit. i, p. 105.
[xxx] HOBSBAWM, E. cit. ix, pp. 59 – 60.
[xxxi] SIEYÈS, E.J. – Qu’est-ce que le Tiers État, p. 1.
[xxxii] RÉMOND, R. cit. i, p. 120.
[xxxiii] RÉMOND, R. cit. i, p. 115; p. 119.
[xxxiv] RÉMOND, R. cit. i, pp. 110 – 111.
[xxxv] (artigo 1º) tout français est soldat et se doit à la défense de la Patrie.
[xxxvi] RÉMOND, R. cit. i, p. 114.
[xxxvii] RÉMOND, R. cit. i, p. 117.
[xxxviii] (artigo 1º) Les distinctions sociales ne peuvent être fondées que sur l’utilité commune.
[xxxix] RÉMOND, R. cit. i, p. 116.
[xl] RÉMOND, R. cit. i, p. 106.
[xli] v. https://www.statista.com/statistics/1009279/total-population-france-1700-2020/
[xlii] MEURIOT, P. – La population et les lois électorales en France, pp. 158 – 159.
[xliii] MEURIOT, P. cit. xlii, p. 170.
[xliv] RÉMOND, R. cit. i, p. 93.
[xlv] FURET, F. cit. ii, p. 200.
[xlvi] HOBSBAWM, E. cit. ix, pp. 53 – 55.
[xlvii] RÉMOND, R. cit. i, pp. 83 – 85.
[xlviii] FURET, F. cit. ii, p. 206.
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