História da Idade Moderna 1 - Idade Moderna e Europa Renascentista.
Tema
Dos conceitos de Idade Moderna e de uma ideia de Europa renascentista, dominada pelas reformas religiosas e as profundas mutações das estruturas económicas, sociais e políticas, que se corporizam numa sociedade de ordens do século XVII.
Objetivos
-
Caracterizar as várias dimensões do Renascimento e as suas implicações no quotidiano, tendo em atenção a definição de Idade Moderna, a sua historiografia e a evolução de uma ideia de Europa;
-
Reflectir sobre o modo como a formulação do estado clássico foi influenciado ou influenciou os movimentos artísticos nascidos no renascimento;
-
Confrontar os ideários, práticas e transformações do do estado moderno, nomeadamente as alterações religiosas;
-
Expor analiticamente as transformações religiosas europeias;
Avaliar a influência das estruturas económicas, sociais e políticas, nomeadamente no que concerne a sociedade de ordens.
TRABALHO : Idade Moderna e Europa Renascentista.
Por mais que saibamos que qualquer periodização histórica é, à partida, arbitrária, artificial e discutível[i] é difícil olhar para trás e não reconhecer uma Idade europeia específica, balizada entre a queda de Constantinopla e a da Bastilha; porventura mais difícil do que o habitual porque o reconhecimento do corte é coevo. É Petrarca que, ao tempo, olha para trás e esquematiza uma “idade moderna” pós-antiga a partir da conversão de Constantino, mutatis mutandis a nossa “Idade Média” (antes atirada para a queda de Roma em 476 d.C.) e a pinta ao negro das trevas da barbárie[ii] em contraposição a uma Antiguidade ideal: viva, fértil e magnífica.
O que Petrarca e os outros uomini nuovi querem é um corte com o obscuro passado imediato e um renascimento pelo regresso à origem civilizatória europeia tal como eles a vêem[iii]: a Roma imperial e a Grécia helenística; e por isso é que Renascimento é, antes de tudo mais, um endónimo dum particular movimento intelectual do Trecento italiano[iv], eventualmente expandido à escala do continente. Um movimento inspirado pela Antiguidade, que centra o Homem e tenta reconduzir a arte à semelhança com a Natureza[v]; em detrimento de formalismos góticos e da centralidade divina medieval.
O movimento ideologicamente foi dum sucesso absoluto; ainda hoje muitos de nós olhamos para a Idade Média como um soturno compasso de espera entre momentos mais brilhantes (a própria designação de “Idade Média” é a prova do êxito de Petrarca); mas, por mais que esta tenha sido um tempo mais de aferrolhar do que de semear[vi], quão esquecida da Antiguidade, estava a Idade Média?[vii] Vasari pode planger a roda da fortuna que tanto nos faz nascer contemporâneos das alturas dum Péricles como das baixezas dum Bernardo de Claraval[viii]; mas, por mais “moralizado” que estivesse o Ovídio que as monjas medievais liam, elas liam-no[ix], e ainda tinham um Abelardo a mandá-las aprender línguas clássicas caso quisessem saber a história toda[x]; um Abelardo cujo humanismo avant la lettre[xi] não pode não ser considerado um precursor do de Petrarca. Há tanta continuidade longa como corte rente; como diz Delumeau, a semente vingou porque o terreno estava preparado[xii].
Por mais que a economia e a política não coincidam necessariamente com os movimentos culturais[xiii], este surge num momento particularmente assustador: velhos impérios nebulosos[xiv] e novos estados à procura duma forma e dum futuro[xv], numa anarquia quase geral[xvi] marcada por guerra, fome e peste[xvii], num fragmento do Apocalipse que mostra a falência da velha estrutura feudal[xviii]. Enquanto parte da intelligentsia ainda chora a ausência de boa e segura liderança cristã[xix], outra já cria o “Decameron”, esse muito específico belo fruto da Peste Negra[xx].
Há três coisas a acontecer na Europa, se me arrogo a análise: um anquilosamento da Igreja face a uma religiosidade popular mais exigente que ritual; os passos finais duma centralização soberana prestes a criar o estado clássico na figura da coroa absoluta; e uma enorme curiosidade intelectual e económica que se estende para trás (o idealizado passado clássico) e para fora (toda a geografia por descobrir pelos europeus).
Primeiro ponto, tese clássica: num tempo de aceleração da laicização[xxi], a Igreja cismada[xxii] mas ainda única no Ocidente, corrupta das solas dos pés ao cocuruto da cabeça[xxiii], centraliza em Roma os ganhos das indulgências que lhe pagam os desregramentos e provoca as teses de frei Martinho nas portas de Wittenberg[xxiv], a Reforma pulveriza-se entre Knox, Calvino[xxv] e a moderação de Isabel, nações racham-se entre puritanos candidatos a carrascos[xxvi] e huguenotes élite da élite exilada[xxvii], a França da Revogação atrasa-se em relação à de Nantes[xxviii]; enquanto a Contra-Reforma de Trento, da Companhia de Jesus, da Inquisição e do Index[xxix] segura um catolicismo que há de ser Barroco. Tese de Delumeau: duas reformas[xxx], ambas a responder a uma ascensão duma religiosidade popular mais exigente[xxxi], uma devotio moderna individualista que prepara o fiel para a morte e se justifica pela fé[xxxii], duas reformas que cindem a cristandade por vontade da base[xxxiii] mas acabam a reforçar a confiança no Criador[xxxiv] (pelo meio de enormes massacres[xxxv]), provocadas pelo desnível entre a mediocridade da resposta romana à inusitada veemência da procura dos fiéis.[xxxvi]
Segundo, a lenta centralização real dos tempos medievais começa a transformar-se em moderna estatização[xxxvii]. Abdicando da extensão para se concentrarem na profundidade[xxxviii], os novos Estados, em concorrência com o remanescente do feudalismo[xxxix], criam largas burocracias[xl] para controlar as velhas fidalguias fundiárias, lhes domesticar o poder fechando-as em novos e magníficos palácios[xli], e se concentrarem no essencial: o controlo dos homens e do chão[xlii]. Esta máquina pesada que se esforça por dominar do topo à base não se dá à luz sem convulsões, resistências e derrotas: a França não tem um ano de paz entre 1623 e o fim da Fronda, a Inglaterra tem uma guerra civil e um longo interregno[xliii], a Rússia uma solução negociada com os descendentes dos boiardos que cria um estado híbrido a dois tempos, e em Espanha, com o soçobrar dos letrados, é a vitória da reação dos Grandes e o atraso do estado clássico[xliv]. Mas no fim o Estado vence[xlv]; o controlo dos censos e arrolamentos[xlvi] cresce quase tanto como os 1000% que lhes cresce tanto o poder de fogo como a receita fiscal[xlvii]; a seu tempo unir-se-á a originalidades locais e será o gérmen de consciências colectivas nacionais[xlviii].
Terceiro ponto, as curiosidades. A dos letrados e artistas olha para trás: em cima dos clássicos preservados pelos medievais ou redescobertos no Islão e da arqueologia que se faz fácil em Itália, criam museus[xlix] e enchem as bibliotecas de grego (a do Vaticano passa de 3 a 350 volumes num só pontificado de oito anos); ser-se um homo trilinguis (ler latim, grego e hebraico)[l] e dominar a mitologia clássica passa por propedêutica[li]. Impulsionada por um novo turismo erudito[lii] e eventualmente pela explosão da imprensa[liii], a arte internacionaliza-se a ponto de hoje nos espalhar atribuições pelo continente todo (a Pietà de Avinhão), o ideal faz-se humanista e naturalista a ponto de diagnosticarmos arterioscleroses em retratos e identificarmos a botânica das paisagens[liv]; mas quão antigo era realmente este stile antico? Na realidade o que começa como imitação[lv] evolui para síntese sincrética e algo absolutamente novo, por mais que inspirado em modelos antigos, sendo se calhar o êxito do soneto um dos melhores exemplos dessa vitalidade[lvi]. A outra curiosidade é económica e virada para fora. Numa Europa saída duma depressão geral[lvii], ainda totalmente submetida às leis naturais e em que 85% da população serve a economia alimentar[lviii], os homens de negócios renascentistas aprenderam as possibilidades do grande comércio e entrevêem um mundo maior[lix]. Medrando em cima de velhos conhecimentos e novas técnicas[lx], a expansão marítima ibérica vai criar em Sevilha um pulmão[lxi] que provocará um renascimento económico, um aumento demográfico e uma economia a funcionar à escala mundial[lxii]. Uma talassocracia[lxiii] apoiada em mercadores-banqueiros (italianos, alemães, etc.)[lxiv] que desenvolvem a banca de crédito e de câmbio, seguros, contabilidade e toda a sorte de instrumentos financeiros e de gestão[lxv].
Mas esta Europa fervilhante, que cresce[lxvi] e se urbaniza[lxvii], que enriquece e se prepara para o domínio mundial, não é para todos, mais, por vezes até parece ser para menos do que antes. Não só continuamos a dividir o continente entre zonas de fome endémica e as de fome meramente epidémica, como o calendário se vai marcando por sucessivas pestes[lxviii] e revoltas[lxix]. A burguesia triunfante do Estado e do Negócio não gera mudança social, pelo contrário, consolida a velha ordem afidalgando-se[lxx] e coloca um biombo entre a sua nova condição e o povo donde saiu[lxxi], sonhando com uma cidade ideal com um andar de cima só para “pessoas de posição”[lxxii]. Numa Europa nova regurgitante de capital o fosso alarga-se, há uma baixa geral das condições de vida[lxxiii], desprezam-se os “mecânicos” e regulam-se corporações de mendigos; a caridade generaliza-se[lxxiv]. Mas não vai ser ela a manter, indefinidamente, este moderno e instável equilíbrio[lxxv].
Bibliografia
CHAUNU, Pierre – A Civilização da Europa Clássica. Vol. I. Lisboa: Editorial Estampa, 1993 [1966].
DELUMEAU, Jean – A Civilização do Renascimento. Vol. I. Lisboa: Editorial Estampa, 1983 [1964].
LE GOFF, Jacques – Os Intelectuais na Idade Média. Lisboa: Gradiva, 1987 [1957].
MOLAS, Pere (ed.) – Manual de Historia Moderna. Barcelona: Editorial Ariel, 2000.
VASARI, Giorgio – The Lives of the Artists. Oxford: Oxford University Press, 2008 [1550].[i] MOLAS, P. – Manual de Historia Moderna, p. 3.
[ii] DELUMEAU, J. – A Civilização do Renascimento, p. 85.
[iii] DELUMEAU, J. cit. ii, p. 85; p. 97.
[iv] DELUMEAU, J. cit. ii, p. 87.
[v] DELUMEAU, J. cit. ii, p. 86.
[vi] LE GOFF, J. – Os Intelectuais na Idade Média, p. 29.
[vii] DELUMEAU, J. cit. ii, p. 88.
[viii] VASARI, G. – The Lives of the Artists, p. 4.
[ix] DELUMEAU, J. cit. ii, p. 95.
[x] LE GOFF, J. cit. vi, p. 34.
[xi] LE GOFF, J. cit. vi, p. 133.
[xii] DELUMEAU, J. cit. ii, p. 99.
[xiii] MOLAS, P. cit. i, p. 4.
[xiv] CHAUNU, P. – A Civilização da Europa Clássica, p. 37.
[xv] DELUMEAU, J. cit. ii, p. 37.
[xvi] DELUMEAU, J. cit. ii, p. 73.
[xvii] DELUMEAU, J. cit. ii, p. 74.
[xviii] DELUMEAU, J. cit. ii, p. 38.
[xix] Enea Piccolomini in DELUMEAU, J. cit. ii, p. 49.
[xx] DELUMEAU, J. cit. ii, p. 78.
[xxi] DELUMEAU, J. cit. ii, p. 80.
[xxii] DELUMEAU, J. cit. ii, p. 121.
[xxiii] DELUMEAU, J. cit. ii, p. 124.
[xxiv] DELUMEAU, J. cit. ii, p. 126.
[xxv] DELUMEAU, J. cit. ii, pp. 128 – 129.
[xxvi] CHAUNU, P. cit. xiv, p. 102.
[xxvii] CHAUNU, P. cit. xiv, p. 132.
[xxviii] CHAUNU, P. cit. xiv, p. 124.
[xxix] DELUMEAU, J. cit. ii, pp. 129 – 130.
[xxx] DELUMEAU, J. cit. ii, p. 138.
[xxxi] DELUMEAU, J. cit. ii, p. 136.
[xxxii] DELUMEAU, J. cit. ii, pp. 142 – 145.
[xxxiii] DELUMEAU, J. cit. ii, p. 123.
[xxxiv] DELUMEAU, J. cit. ii, p. 80.
[xxxv] DELUMEAU, J. cit. ii, pp. 131 – 134.
[xxxvi] DELUMEAU, J. cit. ii, p. 137.
[xxxvii] MOLAS, P. cit. i, p. 5.
[xxxviii] CHAUNU, P. cit. xiv, pp. 37 – 38.
[xxxix] CHAUNU, P. cit. xiv, pp. 42 – 43.
[xl] CHAUNU, P. cit. xiv, pp. 49 – 50.
[xli] DELUMEAU, J. cit. ii, pp. 274 – 275.
[xlii] CHAUNU, P. cit. xiv, p. 41.
[xliii] CHAUNU, P. cit. xiv, pp. 44 – 50.
[xliv] CHAUNU, P. cit. xiv, p. 51.
[xlv] MOLAS, P. cit. i, p. 5.
[xlvi] CHAUNU, P. cit. xiv, p. 39 / p. 155.
[xlvii] CHAUNU, P. cit. xiv, pp. 51 – 52.
[xlviii] DELUMEAU, J. cit. ii, pp. 44 – 46.
[xlix] DELUMEAU, J. cit. ii, pp. 99 – 101.
[l] DELUMEAU, J. cit. ii, pp. 96 – 97.
[li] DELUMEAU, J. cit. ii, p. 106.
[lii] DELUMEAU, J. cit. ii, p. 101.
[liii] DELUMEAU, J. cit. ii, p. 151.
[liv] DELUMEAU, J. cit. ii, pp. 90 – 94.
[lv] DELUMEAU, J. cit. ii, p. 102.
[lvi] DELUMEAU, J. cit. ii, pp. 114 – 117.
[lvii] DELUMEAU, J. cit. ii, p. 78.
[lviii] CHAUNU, P. cit. xiv, p. 200 / p. 189.
[lix] DELUMEAU, J. cit. ii, p. 202 / p. 49.
[lx] DELUMEAU, J. cit. ii, pp. 53 – 54 / pp. 166 – 172.
[lxi] DELUMEAU, J. cit. ii, p. 68.
[lxii] DELUMEAU, J. cit. ii, p. 81; CHAUNU, P. cit. xiv, p. 232.
[lxiii] CHAUNU, P. cit. xiv, p. 133.
[lxiv] DELUMEAU, J. cit. ii, pp. 225 – 226.
[lxv] DELUMEAU, J. cit. ii, pp. 203 – 209.
[lxvi] CHAUNU, P. cit. xiv, p. 200.
[lxvii] DELUMEAU, J. cit. ii, p. 257.
[lxviii] CHAUNU, P. cit. xiv, pp. 189 – 193.
[lxix] DELUMEAU, J. cit. ii, p. 247.
[lxx] DELUMEAU, J. cit. ii, p. 280.
[lxxi] CHAUNU, P. cit. xiv, p. 310.
[lxxii] DELUMEAU, J. cit. ii, p. 287.
[lxxiii] DELUMEAU, J. cit. ii, pp. 282 – 283.
[lxxiv] DELUMEAU, J. cit. ii, pp. 292 – 293.
[lxxv] MOLAS, P. cit. i, p. 4.
Comentários
Enviar um comentário