HISTÓRIA DA IDADE MODERNA 2 - As Revoluções na Idade Moderna.

Tema

Como as revolução inglesa, americana e francesa determinaram as transformações sociais e políticas da nossa contemporaneidade, atendendo às suas origens culturais e comentando analiticamente o seguinte texto :
Fico sempre espantado com a popularidade desta personagem terrível [Napoleão Bonaparte]entre as nações da Europa. Em toda a parte, os camponeses, jovens ou velhos, contam inúmeras histórias sobre ele e, parecendo esquecer o mal que lhes fez, concentram-se nas maravilhas que realizou. A magia da glória é enorme!Adolphe Triers

 

TRABALHO / RESOLUÇÃO: As Revoluções na Idade Moderna.

É compreensível o espanto de Thiers com a perene popularidade de Napoleão entre as nações da Europa: Thiers, este mais moderado dos republicanos, ferrenho opositor dum II Império cujo soçobrar o haveria de elevar à presidência duma III República e sobrevivente a seis quedas de regime em menos de 70 anos (a I República, o I Império, a Restauração bourbónica, a Monarquia de Julho, a II República e o II Império), naturalmente vê Napoleão como um ambicioso que incendiou a Europa, provocou quase 6 milhões de mortos em menos de 15 anos[i] e deixou um robusto partido bonapartista em França; a incompreensão de Thiers com "as nações da Europa" parece-me decorrer da sua incompreensão em ver em Napoleão o que estas vêem, e o que estas vêem nada tem a ver com as convulsões internas francesas.

Mas vejamos donde estamos a partir. Nesta Europa do Antigo Regime leva-se ainda uma vida totalmente submetida às leis naturais, com uma economia a 80% alimentar que ocupa 85 a 90% dos braços, em que crises de subprodução, a fome endémica e crises pestíferas geram uma demografia de tipo antigo, a oscilar entre a morte cíclica e a morte epidémica, uma demografia de vazios[ii]. Este cenário económico e social, enquadrado numa estrutura de ordens que separa estanquemente uma minoria de privilegiados judiciais e fiscais não só da massa de camponeses ainda a viver em feudalismo, como do número crescente de “mecânicos” urbanos e duma ascendente burguesia; tudo isto encimado por monarcas em absolutização do próprio poder à medida que os Estados lhes levam as mãos a todo o lado[iii]. Mas esta existência em tempo longo é só aparentemente imóvel, na expressão de Michelet, l’allure du temps está em aceleração[iv].

A deflagração da mudança podemos ver no momento em que Carlos I de Inglaterra, em crónico conflito com o Parlamento, faz o que nenhum rei inglês fez antes e entra nos Commons com 500 homens armados entre gritos que reclamam o “Privilege!” da Câmara Baixa[v]. Frustrado na demonstração de força, acaba de invectivar o que será a Revolução Inglesa, no que aqui, seguindo Arruda, tanto incluo a Puritana de 1640 como a Gloriosa de 1688[vi]. Uma sociedade rachada entre a crise dos pequenos produtores agrícolas, o relativo declínio da velha aristocracia e a ascensão duma nova gentry enriquecida, mas arredada da lógica duma coroa de direito divino[vii], lança Inglaterra numa lenta e sangrenta negociação que durará até se chegar a esse compromisso social entre a nobreza e a burguesia que resulta na entronização dos Hanôvers e na eliminação do antigo modo de produção (com as enclosures e o tripé Banco de Inglaterra – Governador do Tesouro – Primeiro-Ministro). Um compromisso criador dum sistema muito fluído no topo[viii], livre para desenvolver um capitalismo[ix] que rapidamente se verá na agricultura[x] e que a seguir criará as condições necessárias para uma Revolução Industrial[xi]. Torna-se até tentador, seguindo a lógica de Arruda, ver na Revolução Americana, por mais infundida por Calvino, Hobbes e teorias de direito natural[xii], um “complemento natural”[xiii] (versão colonial) da mesma lógica de soberania popular[xiv] que fez dos Commons o vértice do poder e que os founding fathers, com o seu no taxation without representation, reclamam ver estendida aos colonos ultramarinos[xv]; uma lógica que transforma a Inglaterra da segunda metade do séc. XVIII numa terra de consumo de carne e de álcool em casas de tijolo, sem telhados de colmo, aquecidas a carvão de pedra, uma terra que parece pertencer ao futuro[xvi].

O que a Inglaterra leva cem anos a fazer (e conto do deflagrar de Carlos I aos estertores do Bonnie Prince) França fará, brutalmente, num fim de século. Em França, uma nobreza castificada trava qualquer reformismo económico enquanto a própria pobreza fundiária impede a nova agricultura à inglesa[xvii]; em vez disso assalta o aparelho de Estado, monopolizando os cargos e a condução da política pública[xviii], crescendo-lhe a arrogância senhorial[xix] na medida que sente o cerco dumas Luzes que armam a Revolução[xx] a fechar-se, apoiada num rei absoluto mas timorato e numa rainha influenciável[xxi], criando um bloqueio sociopolítico[xxii] a que a desastrosa colheita de 1788, a explodir os preços 150%, fornecerá o estopim do desespero popular, a burguesia ascendente o programa[xxiii] e Versalhes o rastilho. O vértice rígido de que nos fala Chaunu[xxiv] cai abruptamente no cesto da guilhotina.       

Ambígua aliança[xxv] ou frágil coligação pejada de interesses divergentes e contraditórios[xxvi], as uniões campo/cidade e burguesia/povo duram na medida em que o cerne do levantamento está em questão: este é a destruição da feudalidade[xxvii], e esta destruição da feudalidade está conquistada por 1790[xxviii]; a partir daí as fissuras tornam-se fossos. A revolução do campo que começou por ser anti-senhorial, evolui na desconfiança anti-burguesa até à chouannerie anti-republicana[xxix], enquanto Paris se afoga no sangue das, dirá Engels, crueldades inúteis dos apavorados; la Terreur torna-se uma instância autónoma, a massacrar independentemente das circunstâncias políticas ou militares[xxx]. Paris segue pela Esquerda tanto quanto a Vendeia pela Direita, além e aquém dum possível programa inicial[xxxi], a união de 1789 esfuma-se ainda antes que as coroas europeias consigam reagir à la République. Os três dias de Termidor travarão o terrorismo do Comité de Saúde Pública, que se verá substituído pelo Diretório, que em quatro anos apaga os ardores parisienses, para se ver derrubado pelos irmãos Luciano e Napoleão no 18 de Brumário. Napoleão Cônsul provisório (1799), depois Primeiro Cônsul (1800), depois Primeiro Cônsul vitalício e com direito a nomear sucessor (1802), finalmente Imperador (1804). A Revolução Francesa acabou, por mais que os soldados do Império marchem debaixo da tricolore a cantar “A Marselhesa”.     

Mas o que Thiers incompreende é que por mais fascínio mecanicista que a intelectualidade francesa tenha com Inglaterra, o resto da Europa é antes de mais francófila[xxxii], tanto antes como depois da Revolução. Antes prova-o a proliferação de despotismos esclarecidos pelas Luzes dos enciclopedistas franceses[xxxiii], fenómeno que, como nota Vovelle, nunca chega a ocorrer na fonte[xxxiv]; depois prová-lo-á meio século do emergir da ideia de Nação e dum liberalismo que ao chegarmos ao século XX, faça Metternich o que fizer, será hegemónico.   

Beethoven pode ter compreendido imediatamente o que significava a coroação imperial, e rasgado o título da sua 3ª Sinfonia “Buonaparte” para a rebaptizar simplesmente “Eroica” enquanto bradava “então não é mais que um simples mortal! Também ele vai espezinhar os direitos do Homem para alimentar a sua ambição!”[xxxv] mas esta clarividência que distinguiu imediatamente a práxis imperial da narrativa revolucionária não era nem sequer minoritária entre os cansados da feudalidade europeia. Como bem aponta Furet, a guerra que a França levou a todos os cantos da Europa tomou a face duma guerra de libertação, dum conflito de valores e não de interesses, a fuga para a frente transformou-se numa bandeira de cruzada, numa missão de libertação universal[xxxvi] e o que é evidente é que se a práxis se esfumou em pouco mais de 10 anos (se somarmos os 100 dias) o discurso foi semeado por todo o lado.

E hoje, por mais que estas revoluções não tenham sido simplesmente o salto de um modo de produção para outro, mas também todas as hipóteses contidas num momento de crise de poder[xxxvii], parece-me que a verdade é que, na ausência de revoluções proletárias[xxxviii], continuamos essencialmente a viver num sistema que continua a identificar o interesse burguês com o interesse nacional[xxxix], em que este último grande momento de revoluções conseguidas, como diria Hill, limpou o terreno para o capitalismo[xl]; e que no entanto estas continuam na mesma medida, como aponta Furet, a poder ser vistas como a possibilidade da imaginação duma sociedade se tornar o seu próprio tecido histórico[xli].

 

Bibliografia

ARRUDA, José Jobson de Andrade – Perspectivas da Revolução Inglesa. in Revista Brasileira de História. vol. 7. São Paulo: Associação Nacional de História - ANPUH, 1984, pp. 121 – 131.

CHAUNU, Pierre – A Civilização da Europa Clássica. vol. I. Lisboa: Editorial Estampa, 1993 [1966].

CHAUNU, Pierre – A Civilização da Europa das Luzes. vols. I e II. Lisboa: Editorial Estampa, 1995 [1971].

CLODFELTER, Micheal – Warfare and Armed Conflicts – a statistical encyclopedia of casualty and other figures 1494 - 2007. Jefferson and London: McFarland & Company, 2008.

FURET, François – Penser la Révolution Française. s.l.: Gallimard, 1978.

GREGG, Pauline – King Charles I. London: Phoenix Press, 2000 [1981].

HAMBURGER, Michael (ed.) – Beethoven – letters, journals and conversations. New York: Thames and Hudson, 1984 [1951].

MICHELET, Jules – Histoire du XIXe Siècle I – Directoire, origine des Bonaparte. Paris: Michel Lévy Frères, 1875 [1872].

PIRES, Maria Laura Bettencourt – Sociedade e Cultura Norte-Americanas. Lisboa: Universidade Aberta, 1996.

VOVELLE, Michel – Breve História da Revolução Francesa. Lisboa: Editorial Presença, 1994.


[i] CLODFELTER, M. – Warfare and Armed Conflicts, p. 183.

[ii] CHAUNU, P. – A Civilização da Europa Clássica, vol. I, p. 189.

[iii] VOVELLE, M. – Breve História da Revolução Francesa, pp. 11 – 14.

[iv] MICHELET, J. – Histoire du XIXe Siècle I, p. vii.

[v] GREGG, P. – King Charles I, pp. 343 – 344.

[vi] ARRUDA, J.J.A. – Perspectivas da Revolução Inglesa, p. 121.

[vii] ARRUDA, J.J.A. cit. vi, p. 123.

[viii] CHAUNU, P. – A Civilização da Europa das Luzes, vol. I p. 192.

[ix] Christopher Hill cit. in ARRUDA, J.J.A. cit. vi, p. 125.

[x] VOVELLE, M. cit. iii, p. 12.

[xi] ARRUDA, J.J.A. cit. vi, p. 131.

[xii] PIRES, M.L.B. – Sociedade e Cultura Norte-Americanas, p. 143.

[xiii] ARRUDA, J.J.A. cit. vi, p. 121.

[xiv] PIRES, M.L.B. cit. xii, p. 144.

[xv] PIRES, M.L.B. cit. xii, pp. 137 – 138.

[xvi] CHAUNU, P. cit. viii, vol. II pp. 23 – 24.

[xvii] CHAUNU, P. cit. viii, vol. I pp. 192 – 193.

[xviii] CHAUNU, P. cit. viii, vol. II p. 34; VOVELLE, M. cit. iii, pp. 14 – 15.

[xix] VOVELLE, M. cit. iii, p. 13.

[xx] CHAUNU, P. cit. viii, vol. II p. 34.

[xxi] VOVELLE, M. cit. iii, p. 18.

[xxii] CHAUNU, P. cit. viii, vol. I p. 194.

[xxiii] VOVELLE, M. cit. iii, p. 17.

[xxiv] CHAUNU, P. cit. viii, vol. I p. 191.

[xxv] VOVELLE, M. cit. iii, p. 15.

[xxvi] FURET, F. – Penser la Révolution Française, p. 198.

[xxvii] VOVELLE, M. cit. iii, p. 15.

[xxviii] FURET, F. cit. xxvi, p. 201.

[xxix] FURET, F. cit. xxvi, p. 194.

[xxx] FURET, F. cit. xxvi, pp. 202 – 203.

[xxxi] FURET, F. cit. xxvi, p. 196.

[xxxii] CHAUNU, P. cit. viii, vol. I p. 191.

[xxxiii] CHAUNU, P. cit. viii, vol. II p. 32.

[xxxiv] VOVELLE, M. cit. iii, p. 14.

[xxxv] Ferdinand Ries cit. in HAMBURGER, M. – Beethoven - letters, journals and conversations, p. 47.

[xxxvi] FURET, F. cit. xxvi, p. 200.

[xxxvii] FURET, F. cit. xxvi, p. 205.

[xxxviii] ARRUDA, J.J.A. cit. vi, p. 130.

[xxxix] ARRUDA, J.J.A. cit. vi, p. 122.

[xl] Christopher Hill cit. in ARRUDA, J.J.A. cit. vi, p. 131.

[xli] FURET, F. cit. xxvi, p. 206.



 

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