PROBLEMÁTICA DO CONHECIMENTO HISTÓRICO 1 - Os Historiadores, o Passado e a Atualidade.


 Deste não sei das instruções, mas foi o que a professora me obrigou a ouvir um episódio da Observador com o João Miguel Tavares e o Rui Ramos a dizerem coisas...


TRABALHO / RESOLUÇÃO: Os Historiadores, o Passado e a Atualidade.

Discutir as relações entre o passado e o presente, e as maneiras como o primeiro é chamado a explicar, quando não a justificar o segundo (e qual o papel dos historiadores nesta negociação) é no fundo discutir a função final deste produto, o mais perigoso que a química do cérebro já elaborou, diriam alguns[i].

Ouvir João Miguel Tavares e Rui Ramos a tentar destrinçar o conflito de discursos à volta da invasão da Ucrânia pela Rússia de Putin, mostra-nos bem como o passado tanto pode ser convocado para esclarecer o presente, como pelo contrário usado para o obscurecer, complicar e até justificar a posteriori.

Mesmo numa época (discutivelmente) marcada por uma obsessão presentista, um quase adamismo permanente[ii], a verdade continua a ser antes de mais aquilo que acreditamos ser a verdade[iii] e o passado e sua memória essa pedreira de pedra para construção[iv], matéria-prima para construção duma legitimidade política no presente[v] e, eventualmente, dum certo e determinado futuro. E neste conflito nosso coevo, vemos bem o passado (melhor dizendo, leituras específicas dele) a ser intimado a ser causa e justificação e a insuflar as ações e as narrativas sobre as ações dos vários intervenientes.

Por mais que saibamos que temos de aprender com o passado, que circunscrevermo-nos ao presente nos impede de o compreender[vi], a verdade é que a História continua a ser aquilo que os grupos, às vezes os governos, fazem do passado[vii]. 

Ora, sabendo nós do poder da inevitável interpenetração das memórias individuais com a(s) memória(s) colectiva(s)[viii], é difícil admirarmo-nos com o sucesso duma encarnação identitária colectiva russa, construída em oposição a uma Europa ocidental que teria humilhado a Santa Rússia na Sebastopol de 1855.

Uma actual identidade colectiva russa ainda presa à autocracia czarista, que na interpretação de Ramos, foi sendo progressivamente mantida e substituída pela autocracia stalinista e finalmente pela de Vladimir Putin; mas que continua a carregar a mágoa e o estigma da frustração duma expansão natural (para os expansionistas russos) espartilhada por potências europeias que, ao mesmo tempo se expandiam exponencialmente (o Reino Unido na Índia, o II Império Francês em África, o Reino da Sardenha unificando a Itália sob Vítor Emanuel), teriam impedido a Rússia de fazer o mesmo. Pressuposto memorial colectivo que insuflaria grande parte da naturalidade com que o actual regime russo encara o direito a parte, se não à totalidade, da Ucrânia; e com que consegue justificar junto do cidadão russo médio os sacrifícios colectivos decorrentes desta escolha política.

Um actual regime russo que expressamente afilia o anátema do nazismo, instrumentalizando uma leitura tendenciosa do nacionalismo ucraniano como seu equivalente (numa continuidade com os velhos topoi da propaganda soviética), para não só deslegitimar a resistência ucraniana, como até a existência duma Ucrânia independente.

Num exemplo mais comezinho (e menos dramático nas suas consequências) pergunte-se a um grupo multigeracional de portugueses qual é a “aldeia mais portuguesa de Portugal?”, e é ver quantos (ainda hoje) respondem imediatamente Monsanto em Idanha-a-Nova, e depois pergunte-se-lhes porquê? Para ver se quantos dos inculcados com esta ideia, totalmente abstracta e de escolha aleatória (uma aldeia portuguesa mais portuguesa do que todas as outras aldeias portuguesas), lhe conhece a génese e sabe apontar António Ferro e o Secretariado de Propaganda Nacional como seus geradores[ix]. E assim vemos como uma construção política, mais suficiente tempo e necessário esquecimento de partes do conto, se torna memória colectiva e possivelmente História.

Às vezes a ignorância converte-se mesmo numa força[x], e por mais que o historiador se olhe como alguém que apenas cirze o tecido esburacado do decorrido[xi], a verdade é que não nos podemos fingir meros detectores inertes do passado e temos de nos assumir como seus intérpretes[xii], com todos os desconfortos presentes que isso implica.

Temos de aceitar a objectividade positiva como a meta tão desejável como inalcançável que ela é, assumir que não há relógio sem relojoeiro[xiii] e lembrarmo-nos que a História não é um método de constatar, mas sim de construir a verdade[xiv]; porque por mais que olhemos para o ontem, a verdade é que falamos para o hoje e, dalguma pequena e acessória maneira, construímos o amanhã.


 

Bibliografia

Livros

BLOCH, Marc – Apologia da História ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002 [1949].

DUBY, Georges – A História Continua. Edições Asa, [1991].

HALBWACHS, Maurice – La Mémoire Collective. Paris: Albin Michel, 1997 [1950].

ORWELL, George – Mil Novecentos e Oitenta e Quatro. Lisboa: Antígona, 1999 [1949].

VOLTAIRE – Les Cabales, œuvre pacifique. Londres, 1772.

Capítulos de Livros

FÉLIX, Pedro – O concurso “A Aldeia Mais Portuguesa de Portugal” 1938. In Castelo-Branco, Salwa El-Shawan; Freitas Branco, Jorge (orgs.) – Vozes do Povo – A Folclorização em Portugal. Lisboa: Dom Quixote, 2003. pp. 207 – 232 [em linha: https://books.openedition.org/etnograficapress/569].

Artigos

JOÃO, Maria Isabel – Memória, História e Educação. NW noroeste revista de história. Braga: Núcleo de Estudos Históricos Universidade do Minho, nº 1 / 2005, pp. 81-100. 

Programa de Rádio

RAMOS, Rui; TAVARES, João Miguel – E o resto é História nº 139 Ucrânia: as ligações entre nacionalismo e nazismo [em linha]. Portugal, Rádio Observador, 9 de Março de 2022 (50 min., 40 seg.).   

Filmes

BOUCHERON, Patrick - Vérité. [Em linha] Realização de Cyril Bérard. ABC Penser, 2020. 1 prog. vídeo (22 min., 3 seg.).

CRUZ, Manuel - ¿Se le acaba el tiempo a la Historia? [Em linha] Casa de Velázquez, 24 de Janeiro de 2017 (58 min., 52 seg.).

ROSAS, Fernando – Historiadores y memoria histórica 1/4. [Em linha] Santiago de Compostela, IV Congreso Internacional Historia a Debate, 18 de Dezembro de 2010 (58 min., 46 seg.).


[i] BLOCH, M. – Apologia da História ou o ofício do historiador, p. 45.

[ii] CRUZ, M. – ¿Se le acaba el tiempo a la Historia?.

[iii] BOUCHERON, P. – Vérité.

[iv] DUBY, G. – A História Continua, p.19.

[v] ROSAS, F – Historiadores y memoria histórica 1/4.

[vi] Jules Michelet in BLOCH, M. cit. i, p. 62.

[vii] Pierre Nora in JOÃO, M.I. – Memória, História e Educação, p.84.

[viii] HALBWACHS, M. – La Mémoire Collective, pp. 97-99.

[ix] v. FÉLIX, Pedro –  O concurso “A Aldeia Mais Portuguesa de Portugal” 1938. pp. 207 – 232.

[x] ORWELL, G. – Mil Novecentos e Oitenta e Quatro. p. 10.

[xi] DUBY, G. cit. iv, p. 35.

[xii] ROSAS, F. cit. v.

[xiii] VOLTAIRE – Les Cabales, œuvre pacifique, p. 9.

[xiv] BOUCHERON, P. cit. iii.

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