PROBLEMÁTICA DO CONHECIMENTO HISTÓRICO 2 - Crítica das Fontes – a mera procura de documentos históricos verdadeiros?
Trabalho a desenvolver
Comente, de forma circunstanciada, o texto apresentado, à
luz do seguinte tópico: crítica das fontes – a
mera procura dos documentos históricos verdadeiros?
“A intervenção do historiador que escolhe o documento, extraindo-o do conjunto dos dados do passado, preferindo-o a outros, atribuindo-lhe um valor de testemunho que, pelo menos em parte, depende da própria posição na sociedade da sua época e da sua organização mental, insere-se numa situação inicial que é ainda menos «neutra» do que a sua intervenção. O documento não é inócuo. Antes de mais, é o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziu, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, também pelo silêncio. O documento é uma coisa que fica, que dura, e o testemunho, o ensinamento (…) que traz devem ser em primeiro lugar analisados desmistificando o seu significado aparente. O documento é (…) o resultado do esforço realizado pelas sociedades históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si próprias. No limite, não existe um documento-verdade. Todo o documento é mentira. Cabe ao historiador não passar por ingénuo. Os medievalistas, que tanto trabalharam para construir uma crítica – sempre útil, de facto – do falso, devem superar esta problemática porque qualquer documento é ao mesmo tempo, verdadeiro – incluindo, e talvez sobretudo os falsos – e falso, porque (…) é em primeiro lugar uma roupagem, uma aparência enganadora, uma montagem. É preciso começar por desmontar, demolir esta montagem, desestruturar esta construção e analisar as condições de produção dos documentos (…)”.
Jacques Le Goff, Memória e História, vol. II. Memória. Lisboa: Edições 70, 2000, p. 114.
TRABALHO / RESOLUÇÃO: Crítica das Fontes – a mera procura de documentos históricos verdadeiros?
Fosse a pergunta tão simples como aparenta e a curtíssima resposta seria: não.
Mesmo sendo uma atitude quase policial[i] de dúvida metódica, “examinadora” diria Volney[ii], intrinsecamente necessária ao trabalho de um historiador; as verdades que procuramos são sempre muito mais elusivas e complexas do que uma simples datação Carbono 14 ou uma verificação caligráfica para efeitos judiciais.
Um historiador é um investigador, mas é um erro e uma enorme ilusão reduzi-lo a um mero identificador de falsificações[iii]; porque nem o “detective” é um mecanismo objectivo, nem a “prova” um deus ex machina prenhe de respostas logo que lhe provada a imaculada concepção.
Insiste Le Goff como nenhum documento é inócuo, já que começa sempre, inevitavelmente, por ser uma projecção dum determinado presente no futuro. Para além de termos sempre de contar com a propaganda e censura dolosas do produtor[iv] (razão tem Boucheron quando repete que a nossa actual “pós-verdade” esteve sempre no coração da retórica[v]); não nos podemos esquecer das inevitáveis, por mais que inocentes, deformações de testemunho, mais certas que raras; fora a ocasional absoluta falta de racionalidade do embuste puro. Chegando assim facilmente à radical declaração de como todo o documento é uma, muito específica e particular, mentira.
E isto sem sequer contarmos com o caminho que esta produção, obrigatoriamente problemática, fez até chegar a nós. Também sublinhado por Le Goff, a própria história deste percurso ao longo do tempo, é necessariamente agregável ao documento; mesmo que seja exclusivamente composta de silêncio e esquecimento.
E no limite, nem o facto de provarmos inquestionavelmente a falsidade ou manipulação dum documento lhe desconta completamente o valor historiográfico. A falsificação continua a expressar uma realidade passada; obviamente não a realidade à qual o “documento” se refere, mas outrossim o contexto em que a falsificação foi produzida, que inevitavelmente fala sobre um momento histórico em si mesma: às vezes, é a falsificação a dizer a verdade[vi].
Insistamos antropólogos[vii] e historiadores[viii] como a prática de nos encharcarmos no contexto, nos submergirmos no terreno nos aumenta a fiabilidade dos testemunhos, como mergulhar de cabeça no ambiente do espaço ou do tempo nos arredonda os ângulos das insuficiências; mas a verdade é que nada anulará a regra das três balanças falhas de Bloch: três balanças adulteradas da mesma maneira darão três resultados iguais, e todos três estarão errados[ix].
Tão falhas são as medidas como o medidor. Não precisamos de escorregar para as profundezas do pós-modernismo para aceitarmos a impossibilidade duma objectividade positiva por parte do investigador[x]. No fundo é quase simples, o consumidor do documento tem quase tanta incapacidade para ser frio e objectivo quanto o produtor; seria inumano exigir a qualquer dos envolvidos que agisse como uma peça dum mecanismo de engenharia. Esta ciência humana vai inevitavelmente ser tão humana como nós, o que só é um “pecado” científico face a uma moral positivista[xi], que já ruminámos e incorporámos, felizmente sem sermos engolidos por ela ou sentirmos a pueril necessidade de a ultrapassar.
Em rigor o nosso tipo de ciência precisa de humanos em ambas as pontas. Bastide descreve-nos o trabalho como um diálogo[xii] e outros até como uma maiêutica[xiii]. Quando, como diz Le Goff, preferimos um documento a outro mostramos como a neutralidade do investigador mais do que inexistente, é impossível, se não mesmo inconveniente. O fermento de fantasia de Duby[xiv] nunca é o único ingrediente do pão, mas sem fermento, o pão é hóstia.
Eu também acredito na não ficcionalidade da História[xv]. Mais que não seja por afastamento (espacial, temporal, sociológico ou cultural) o investigador tem a possibilidade dum ponto de vista maior, mais panorâmico[xvi]; o que somado ao dever do método aprendido inventa o caminho para chegar à verdade emaranhada no liame dos factos[xvii].
Mas isto não é dizer que não haja arte enlaçada na técnica. Dizia Montaigne que vomitar a refeição não é o mesmo do que a digerir[xviii]; o trabalho do historiador é, tem sempre de ser, muito mais do que vomitar as representações que o Passado criou sobre si próprio: é, tem de ser sempre, digeri-las e compreendê-las e transformá-las finalmente em refeição para o Presente.
Bibliografia
Livros
BLOCH, Marc – Apologia da História ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002 [1949].
DUBY, Georges – A História Continua. Edições Asa, [1991].
LANGNESS, Lewis L.; FRANK, Gelya – Lives an anthropological approach to biography. Novato: Chandler & Sharp Publishers, 1995 [1981].
MONTAIGNE, Michel de – Les Essais. Paris: Gallimard, 2009 [1580].
POIRIER, Jean; CLAPIER-VALLADON, Simone; RAYBANT, Paul – Histórias de Vida teoria e prática. Oeiras: Celta, 1995 [1983].
Artigos
COSTA, Adelaide Millán – Arnaldo Gama entre a Literatura e a História mote para uma reflexão epistemológica. Actas do Colóquio Literatura e História. s.l.: Universidade Aberta / 2002, pp. 63 – 75.
LARA, Sílvia Hunold – Os Documentos Textuais e as Fontes de Conhecimento Histórico. Anos 90. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, v. 15, nº. 28 / Dezembro de 2008, pp. 17 – 39.
MORIN, Françoise – Pratiques Anthropologiques et Histoire de Vie. Cahiers Internationaux de Sociologie. Paris: Presses Universitaires de France, v. LXIL / 1980, pp. 313 – 339.
Filmes
BOUCHERON, Patrick - Vérité. [Em linha] Realização de Cyril Bérard. ABC Penser, 2020. 1 prog. vídeo (22 min., 3 seg.).[i] DUBY, G. – A História Continua, p. 30.
[ii] Constantin-François Chassebœuf, conde de Volney apud BLOCH, M. – A Apologia da História ou o ofício do historiador, p. 90.
[iii] LARA, S.H. – Os Documentos Textuais e as Fontes de Conhecimento Histórico, p. 20.
[iv] BLOCH, M. cit. ii, p. 101.
[v] BOUCHERON, P. – Vérité.
[vi] BLOCH, M. cit. ii, p. 97.
[vii] LANGNESS, L.L.; FRANK, G. – Lives an anthropological approach to biography, p. 50.
[viii] DUBY, G. cit. i, p. 34.
[ix] BLOCH, M. cit. ii, p. 114.
[x] DUBY, G. cit. i, p. 72.
[xi] COSTA, A.M. – Arnaldo Gama entre a Literatura e a História mote para uma reflexão epistemológica, p. 67.
[xii] Roger Bastide apud MORIN, F. – Pratiques Anthropologiques et Histoire de Vie, p. 328.
[xiii] POIRIER, J. et al – Histórias de Vida teoria e prática, p. 24.
[xiv] DUBY, G. cit. i, p. 51.
[xv] COSTA, A.M. cit. xi, p. 63.
[xvi] POIRIER, J. et al cit. xiii, p. 25.
[xvii] Numa Denis Fustel de Coulanges apud BLOCH, M. cit. ii, p. 134.
[xviii] MONTAIGNE, M. de – Les Essais, p. 185.
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