Seminário I 1 - O papel dos forais na História de Portugal.

Temática
O papel dos forais na História de Portugal

Objetivos

  • Evidenciar origem, desenvolvimento e importância da instituição foralenga na evolução do reino português.

  • Análise crítica fundamentada de um texto gerado pelo Chat GPT.

    Trabalho a desenvolver

    Pedimos ao Chat GPT (versão GPT 3.5) que criasse um texto subordinado ao seguinte mote:

Crie um texto onde evidencie a origem, desenvolvimento e importância dos forais na História de Portugal.

A resposta foi:

Os fóruns desempenharam um papel fundamental na história de Portugal, representando marcos importantes na sua evolução política, social e económica. Originados na Idade Média, os fóruns eram cartas régias que conferiam privilégios e direitos a povos recém-fundados ou já existentes. Vamos explorar a origem, o desenvolvimento e a importância dos fóruns na história de Portugal. **Origem dos Forais:** Os forais tiveram sua origem no período da Reconquista, quando os cristãos reivindicaram territórios anteriormente sob domínio muçulmano na Península Ibérica. À medida que avançavam para o sul, os monarcas cristãos, como D. Afonso I (Afonso Henriques), concediam forais às comunidades que ajudavam a colonizar ou reconquistar. Esses documentos estabelecem direitos e deveres, bem como uma estrutura administrativa local. **Desenvolvimento dos Forais:** Os forais evoluíram ao longo dos séculos, adaptando-se às mudanças políticas e económicas de Portugal. No reinado de D. Dinis, por exemplo, os forais foram sistematizados e codificados, dando origem ao famoso "Foral de 1512". Nesse documento, foram definidos os direitos e deveres dos habitantes das vilas e cidades, bem como as obrigações fiscais e militares. Durante a Idade Média e o período dos Descobrimentos, Portugal expandiu seu império marítimo. À medida que novas terras eram descobertas e colonizadas, os forais eram frequentemente concedidos a essas colônias, como ferramenta de organização e administração local. Essa prática ajudou a consolidar o domínio português em vastos territórios, incluindo Brasil, África e Ásia. **Importância dos Forais:** Os forais desempenharam um papel crucial na história de Portugal por várias razões: 1. **Organização Administrativa:** Os forais estabeleceram uma estrutura administrativa das comunidades locais, definindo os poderes das autoridades locais, como os concelhos, e os direitos dos habitantes.

QUESTÃO:

Com base no que estudou até ao momento, detete o que está certo e errado, confuso, ou incompleto, na resposta gerada pela ferramenta de inteligência artificial. Faça-o redigindo o seu próprio texto e remetendo para as referências bibliográficas e webgráficas que compulsou.

 

TRABALHO / RESOLUÇÃO: O papel dos forais na História de Portugal.

É difícil não ficar desiludido (ou tranquilizado) com as actuais capacidades deste tipo de ferramenta, se o resultado é este. Num bloco de texto que enche uma página, o Chat GPT, sobre forais, acaba por ser bastante vago, a navegar entre a repetição e a confusão; fora os erros mais gritantes, como confundir “fóruns” com forais ou colocar D. Dinis em 1512, mais de 180 anos depois da sua morte. Se decantarmos o que é dito, informa-nos que os forais são “originados na Idade Média”, que estabelecem “direitos e deveres” e a administração local (com uma referência posterior a obrigações fiscais e militares), que “evoluíram” e que foram uma prática que “ajudou a consolidar” o domínio ultramarino durante a expansão. É muito pouco. A primeira coisa que o algoritmo não faz é definir o conceito, circunscrevendo-lhe o significado para o tornar passível de ser uma ferramenta para pensar um fenómeno. Podia ter usado a de Serrão que define foral como um diploma concedido pelo rei ou por um senhorio que prescreve as relações entre povoadores e o outorgante no que envolve magistraturas locais, liberdades, garantias e imunidades colectivas, impostos, formas judiciárias, multas e fianças, obrigações militares e usos de terras comuns[i]; ou as de Mattoso[ii] e de Reis[iii] que sublinham a tendência fundacional e o reconhecimento dalgum grau de autonomia ao mesmo tempo que regulamentam as relações internas da comunidade e externas no que dizem respeito a dependências tributárias, judiciais, militares e produtivas. Este pecado original da não-definição vai repercutir geometricamente.

Reduzir a questão das origens a um “originados na Idade Média” é consternante. Filho das cartas-pueblas de povoação e da enfiteuse[iv], hoje é quase consensual pensar o foral como fruto maduro medieval[v], brotado da auto-organização defensiva[vi] que se sucede à queda visigótica[vii], com exemplos no território desde os tempos de Fernando I de Castela e Leão[viii], fora todos os que conhecemos desde antes do início da real dinastia Afonsina[ix]; mas mesmo isto pouco diz das influências que lhe proporcionaram o surgimento, e que fazem discutir os historiadores há quase 150 anos[x]. Se Herculano os idealiza como sobrevivência democrática do Império[xi], prolongada por moçárabes[xii], a ponto de os tipologizar em termos de perfeição de acordo com o suposto modelo original[xiii]; já Merêa vê a ligação como forçada e sublinha as características germânicas deste tipo de contrato, apontando as romanidades como mais herdeiras da redescoberta bolonhesa do que de improváveis descendências directas[xiv]; enquanto Boisselier procura acentuar a influência islâmica[xv], perante as admoestações de como nada há no mundo árabe como este municipalismo[xvi], de como os magistrados respondiam ao califa e não aos vizinhos[xvii] e de como a única sobrevivência islâmica é na nomenclatura arabizante dos oficiais[xviii].

Tudo isto, enquanto o Chat GPT parece nada ter a dizer sobre a convivência desta forma de organização social, com o outro regime de ocupação do espaço e gestão do poder coevo – o senhorial. Tendo em conta como a geografia fazia do Minho um viveiro de homens e riqueza[xix], teria sido interessante uma palavra sobre os limites das respectivas influências[xx], já para não falar do carácter de resistência à absorção feudal do municipalismo[xxi] e as formas híbridas entre um modo de governo e outro[xxii]. Mais que não fosse, para nos preparar para a maré senhorial que aí vem[xxiii]. Outro silêncio gritante é sobre a diferença capital entre forais urbanos e rurais[xxiv]. Identificada desde Torquato de Sousa Soares[xxv], mostra-nos como a natureza básica dos forais rurais: de fronteira, para municípios curtos de gente, coesos e tendencialmente igualitários criam uma realidade fundamentalmente diferente das cidades, socialmente niveladoras[xxvi], mas mercantis e com extremos que começam a preparar a passagem dos estados às classes[xxvii]. Mas sejam urbanos ou rurais, estes vassalos populares colectivos[xxviii], são o reconhecimento do papel dos anónimos[xxix] na redescida cristã das Astúrias, com uma intenção fundacional[xxx] ou meramente reanimadora[xxxi]. Mais vezes reconhecidos do que criados[xxxii] por magnatas e, na maioria dos casos, pela coroa, são-no muitas vezes a pedido das próprias comunidades[xxxiii]; tipicamente com objectivos que passam pela conquista, defesa e exploração económica de território recentemente repovoado, provendo uma base legal e de organização social, com alguma autonomia e capacidade de autogestão, debaixo da protecção do outorgante[xxxiv]. Outorga que muitas vezes passava por um processo não só de verificação das condições no terreno por um probador representante do outorgante, como por negociações sobre valores de tributos (em metal, material ou trabalho) e exigências em termos de construções defensivas[xxxv]. Criando-se assim um modelo de organização social, falando especificamente de municípios rurais dependentes do rei, que passava por um governo local em concilia públicos e acessíveis a todos os vizinhos livres[xxxvi], com uma expectativa democrática e igualitária (por mais que saibamos quão rapidamente emergiam pequenas oligarquias que tendiam a dominar as magistraturas locais[xxxvii]), e que se caracterizava pela capacidade deliberativa e eleição dos próprios membros; a capacidade de estabelecer um direito local – o costume – e um regime judicial próprio; o deter da organização do regime fiscal e da defesa militar; o garantir da titularidade dos meios de produção pelos vizinhos e a exclusão dos privilegiados, ou pelo menos, destes exercerem as suas prerrogativas no território concelhio[xxxviii].

Passando à declaração do Chat GPT de como os forais “evoluíram” é de imaginar que esteja a querer expressar como, com a conquista do Algarve e mudança de uma economia de guerra para uma de paz sob Afonso III[xxxix] o desenvolvimento daí surgido tenha tornado os velhos foros progressivamente obsoletos[xl], encetando-se assim o início do atrofiamento da autonomia municipal[xli], ou seja, o início do que Reis chama o fim da época heróica dos municípios[xlii]. No crónico conflito entre a coroa e as grandes casas é com Afonso III, e ainda mais com Dinis, que a centralização do poder na pessoa do rei o eleva acima dum primus inter pares entre os magnatas do reino[xliii], e a pouco e pouco a autoridade real vai de ténue supervisão a intervenção minuciosa[xliv]; mesmo com hesitações pontuais (Afonso V, Fernando I) a pouco e pouco os olhos, os ouvidos e as mãos do rei chegarão a todo o lado[xlv]. E no programa de centralização real, encurtar a rédea aos concelhos, foi o ponto mais fácil[xlvi]. Os alcaides[xlvii] e os juízes de fora[xlviii] de nomeação real vêem-se fortalecidos em detrimento dos vereadores; logo com Dinis assiste-se ao fim do princípio da autonomia judicial[xlix] e ao início duma normalização fiscal[l]; e eventualmente a coroa dispõe dos municípios como senhorios pessoais do rei[li], reduzindo-lhes os forais a lacónicas cartas[lii]. A seu tempo veremos um João II a declarar-se desobrigado de quaisquer foros anteriores à sua ascensão[liii], um Manuel I a reduzi-los à fiscalidade[liv] e o grosso do trabalho estava feito muito antes do desmonte final entre a regência do Príncipe Dom João e Mouzinho da Silveira, já nos oitocentos[lv].

É em grande medida por isso que, finalmente, soa tão estranho o destaque que o Chat GPT dá aos forais no processo de expansão ultramarina. Isto quando é notório que os forais desse momento são claramente uma forma jurídica muito diferente da que surgiu durante a Reconquista: muito mais uma carta de doação com regulação económica[lvi], uma delegação por graça e mercê que estabelece uma relação senhorial entre capitão e moradores[lvii] e resguarda sempre o poder real como superior, inalienável e imprescritível[lviii]. Chamar-lhe “foral” pouco passa de apropriação de referências antigas para legitimar novas[lix]. E é assim que inevitavelmente regressamos ao pecado original do Chat GPT. Se à partida sabemos, com Reis, que formalmente os forais não se distinguem fundamentalmente doutros documentos coevos[lx], que nos sécs. XI e XII não têm uma designação exclusiva, mas muitas fórmulas híbridas e difíceis de distinguir de contratos enfitêuticos e que o uso da palavra “foral” só se generaliza já no séc. XIV[lxi], como não compreender a confusão do algoritmo e a (ainda) necessidade de humanos para compreender o que os humanos fazem e fizeram.

 

Bibliografia

BONCIANI, Rodrigo Faustinoni – O Poder Régio em Mutação – expansão atlântica e alianças ibéricas no fim do século XV. in Nuevo Mundo Mundos Nuevos Débats [em linha] de 28 de Março de 2014, URL: http://journals.openedition.org/nuevomundo/66538 DOI: https://doi.org/10.4000/nuevomundo.66538.

COELHO, Maria Helena da Cruz; HOMEM, Armando Luís de Carvalho (coord.) –Volume III Portugal em Definição de Fronteiras (1096 – 1325) Do Condado Portucalense à Crise do Século XIV. Serrão, Joel; Marques, A.H. de Oliveira (dir.) Nova História de Portugal. Lisboa: Editorial Presença, 1996.

COELHO, Maria Helena da Cruz; MAGALHÃES, Joaquim Romero – O Poder Concelhio – das origens às Cortes Constituintes – notas de História Social. Coimbra: Centro de Estudos de Formação Autárquica, 1986.

DUARTE, Luís Miguel – Os “Forais Novos” uma reforma falhada? in III Congresso Histórico de Guimarães – D. Manuel e a sua época. Guimarães: Câmara Municipal de Guimarães, 2004, pp. 159 – 170.

HERCULANO, Alexandre – História de Portugal – desde o começo da monarchia até ao fim do reinado de Affonso III. Livro VII, Paris / Lisboa: Aillaud & Bertrand, [ca 1875].

MATTOSO, José – Identificação de um País – Ensaio sobre as origens de Portugal 1096 – 1325. Volume I – Oposição, Lisboa: Editorial Estampa, 1985.

MATTOSO, José; SOUSA, Armindo – Segundo Volume A Monarquia Feudal (1096 – 1480). Mattoso, José (dir.) História de Portugal. s.l.: Círculo de Leitores, 1993.

REIS, António Matos – História dos Municípios (1050 – 1383). Lisboa: Livros Horizonte, 2015 [2006].

SERRÃO, Joel (dir.) – Dicionário de História de Portugal. Volumes II e III, Porto: Livraria Figueirinhas, 2006 [1963-1971].


[i] SERRÃO, J. – Dicionário de História de Portugal vol. III, p. 55.

[ii] MATTOSO, J. – Identificação de um País, pp. 339 – 340.

[iii] REIS, A.M. – História dos Municípios, pp. 106 – 107.

[iv] SERRÃO, J. cit. i, pp. 55 – 56.

[v] REIS, A.M. cit. iii, p. 81.

[vi] MATTOSO, J.; SOUSA, A. – Segundo Volume A Monarquia Feudal, p. 207.

[vii] COELHO, M.H.C.; MAGALHÃES, J.R. – O Poder Concelhio, p. 1.

[viii] REIS, A.M. cit. iii, p. 101.

[ix] COELHO, M.H.C.; HOMEM, A.L.C. – Volume III Portugal em Definição de Fronteiras, pp. 567 – 575.

[x] SERRÃO, J. – Dicionário de História de Portugal vol. II, p. 137.

[xi] “A historia da instituição e multiplicação dos concelhos é a historia da influencia da democracia na sociedade, da acção do povo na significação vulgar desta palavra, como elemento politico” in HERCULANO, A. – História de Portugal. Livro VII, p. 90.

[xii] MATTOSO, J. cit. ii, p. 336.

[xiii] REIS, A.M. cit. iii, p. 65.

[xiv] REIS, A.M. cit. iii, pp. 69 – 70.

[xv] REIS, A.M. cit. iii, p. 73.

[xvi] REIS, A.M. cit. iii, p. 80.

[xvii] REIS, A.M. cit. iii, p. 86.

[xviii] REIS, A.M. cit. iii, p. 94.

[xix] MATTOSO, J.; SOUSA, A. cit. vi, p. 171.

[xx] MATTOSO, J.; SOUSA, A. cit. vi, p. 165.

[xxi] REIS, A.M. cit. iii, p. 91.

[xxii] MATTOSO, J.; SOUSA, A. cit. vi, p. 217.

[xxiii] MATTOSO, J. cit. ii, p. 293.

[xxiv] MATTOSO, J. cit. ii, p. 335.

[xxv] REIS, A.M. cit. iii, p. 69.

[xxvi] MATTOSO, J. cit. ii, p. 312.

[xxvii] COELHO, M.H.C.; MAGALHÃES, J.R. cit. vii, p. 6

[xxviii] MATTOSO, J.; SOUSA, A. cit. vi, p. 287. COELHO, M.H.C.; MAGALHÃES, J.R. cit. vii, p. 5.

[xxix] REIS, A.M. cit. iii, p. 9.

[xxx] REIS, A.M. cit. iii, p. 107.

[xxxi] REIS, A.M. cit. iii, p. 58.

[xxxii] MATTOSO, J.; SOUSA, A. cit. vi, p. 216. COELHO, M.H.C.; MAGALHÃES, J.R. cit. vii, p. 3.

[xxxiii] REIS, A.M. cit. iii, pp. 107 – 109.

[xxxiv] MATTOSO, J.; SOUSA, A. cit. vi, p. 218. COELHO, M.H.C.; MAGALHÃES, J.R. cit. vii, p. 4. REIS, A.M. cit. iii, pp. 115 – 116.

[xxxv] REIS, A.M. cit. iii, pp. 110 – 114.

[xxxvi] COELHO, M.H.C.; MAGALHÃES, J.R. cit. vii, p. 6.

[xxxvii] COELHO, M.H.C.; HOMEM, A.L.C. cit. ix, p. 562.

[xxxviii] MATTOSO, J.; SOUSA, A. cit. vi, p. 218.

[xxxix] COELHO, M.H.C.; HOMEM, A.L.C. cit. ix, p. 576.

[xl] SERRÃO, J. cit. x, p. 139.

[xli] MATTOSO, J. cit. ii, p. 342.

[xlii] REIS, A.M. cit. iii, p. 596.

[xliii] MATTOSO, J.; SOUSA, A. cit. vi, pp. 280 – 281.

[xliv] MATTOSO, J.; SOUSA, A. cit. vi, p. 277.

[xlv] MATTOSO, J.; SOUSA, A. cit. vi, pp. 372 – 373.

[xlvi] MATTOSO, J.; SOUSA, A. cit. vi, p. 286.

[xlvii] MATTOSO, J.; SOUSA, A. cit. vi, p. 281.

[xlviii] SERRÃO, J. cit. x, p. 139.

[xlix] MATTOSO, J.; SOUSA, A. cit. vi, p. 239.

[l] MATTOSO, J.; SOUSA, A. cit. vi, p. 287.

[li] MATTOSO, J.; SOUSA, A. cit. vi, p. 288.

[lii] REIS, A.M. cit. iii, p. 601.

[liii] MATTOSO, J.; SOUSA, A. cit. vi, p. 374.

[liv] DUARTE, L.M. – Os “Forais Novos” uma reforma falhada? pp. 161 – 162.

[lv] SERRÃO, J. cit. i, p. 56.

[lvi] BONCIANI, R.F. – O Poder Régio em Mutação, § 23.

[lvii] BONCIANI, R.F. cit. lvi, § 65.

[lviii] BONCIANI, R.F. cit. lvi, § 25.

[lix] BONCIANI, R.F. cit. lvi, § 67.

[lx] REIS, A.M. cit. iii, p. 125.

[lxi] REIS, A.M. cit. iii, pp. 102 – 104.



 

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