TEORIAS E CORRENTES HISTORIOGRÁFICAS 1 - A HISTORIOGRAFIA DE ALEXANDRE HERCULANO

Trabalho a desenvolver

Leia o texto A e o texto B (este até à página 215) e elabore um ensaio sobre a conceção de História e do trabalho historiográfico, em Alexandre Herculano.

 

TRABALHO / RESOLUÇÃO: A Historiografia de Alexandre Herculano. 

O que é a História para Alexandre Herculano, esse especialmente gigantesco prócere que nos olha severamente do passado, à medida que lhe tacteamos no (num dos) ofício(s)? A História para Herculano é um sacerdócio de magistratura moral[i], e é esta enormidade, antes de tudo, porque a História é útil.

Mais do que um Thierry que vai à História à procura de argumentos e depois se deixa enlear pela beleza do mergulho no passado[ii], Herculano alinha com Guizot ao olhar para a História como ciência aplicável, recuperando um Cícero da visão da História como mestra da vida, um Políbio duma História como escola prática da coisa pública[iii]. Para Herculano mais do que um fim em si, a História é um meio cujo único intuito[iv], e atentemos na exactidão das palavras porque são dele, é alumiar o presente[v] pelas suas lições; investigada, estudada, trabalhada doutro modo qualquer, Herculano vê-a reduzida a passatempo vão[vi]. A bicada de Teófilo Braga ao caracterizar a “História de Portugal” herculaniana como ad usum delphini[vii] só peca por defeito, Herculano não só quer iluminar, educar e edificar o futuro D. Pedro V, quer iluminar, educar e edificar todo o conjunto da nação.

Mas educar e edificar a nação em que sentido, em que direção? Alexandre Herculano é, nos meados do séc. XIX, o que não seria injusto chamar um liberal clássico, tão radicalmente oposto ao absolutismo serôdio miguelista como à possibilidade duma Grande Terreur à Comité de Salvação Pública de 1793. Novamente muito próximo das liberdade e autoridade em Guizot[viii], essa enorme eminência da política de facto durante a Monarquia de Julho em França, Herculano desenvolve uma visão de devir histórico em que liberdade e desigualdade se digladiam cronicamente. Um devir histórico, não circular mas em espiral[ix], entre um espontâneo anseio por liberdade e uma natural, constante e indestrutível desigualdade; dois princípios essenciais em eterna luta em todas as associações humanas[x]. E a resposta, política, de Herculano é a da necessidade de coexistência entre estas duas pulsões: e vemo-lo a pregar um compromisso[xi] que tão necessariamente exclui o princípio de direito divino como o duma soberania popular, dum sufrágio universal ou da possibilidade revolucionária[xii].

A consequente resposta científica do muito consequente Herculano é possivelmente, ainda mais heteróclita para a nossa sensibilidade anacrónica. Se em desequilíbrio o resultado é sempre tirania: da democracia de todos ou da oligarquia de poucos[xiii], só a conciliação previne a tirania e cria a possibilidade de equilíbrio; e portanto Alexandre Herculano procura identificar na História nacional um momento em que as ditas eternas forças tenham estado em equilíbrio, e encontra-o na Idade Média. Num esquema de ciclos ascendentes e descendentes[xiv] de virilidade moral[xv], Herculano reduz a gesta dos descobrimentos a génese do absolutismo esvaziada de sabedoria social (para horror de Barradas de Carvalho[xvi]), enquanto eleva o passado medieval a único digno da atenção historiográfica[xvii]. Como acabado liberal clássico dum constitucialismo patrício absolutamente em linha com o romantismo do seu tempo, Herculano vê o progresso na reativação de tendências antigas[xviii]: o progresso português, a acção do povo, está no municipalismo medieval[xix].

Mas será que tudo o que foi dito antes refuta a possibilidade de Herculano ter trabalhado de maneira absolutamente honesta e muito cuidadosa? Ou que lhe isto lhe impediu a estrita imparcialidade com que escrevia para amigos da verdade dispostos a sacrificar amor-próprio e patriotismo[xx]. Eu, do alto da minha insignificância teórica, diria que depende da definição do conceito. Que Herculano foi absolutamente cuidadoso e honesto com as fontes parece ter sido consensual até entre os que lhe chamavam panfleto às conclusões enquanto lhe gabava o juízo no tratamento de dados[xxi], portanto sobra compreender o que poderia querer dizer imparcialidade para Herculano.

Parece ser esta total confluência entre honestidade no trabalho e, logo, objectividade positiva, que gera a noção de “imparcialidade” em Herculano. Herculano “desmagifica” o micro, largando as histórias em que nunca acreditou, enquanto mantém o providencialismo sagrado macro do valor histórico em que continua a acreditar[xxii], e declara-se imparcial. Oliveira Martins, um passo à frente, olha-o e exige-lhe uma neutralidade[xxiii] que pede, pelo menos, a anulação de si mesmo.

Olhando-o daqui, o positivismo que clama por uma perspectiva de lugar nenhum[xxiv], totalmente mecânica e tecnocrática, esclarece-se como uma absoluta impossibilidade. O “Passado” teve uma existência, mas o nosso olhar é necessariamente contaminado e aditivado por quem somos, pelo que está a acontecer à nossa volta; não há Ciências Humanas sem humanos; no olhar também, necessariamente, conta quem olha.

Cícero, na sua imorredoira pecha, falava da História como magistra vitae (ainda que como argumento de autoridade)[xxv], Herculano empurra-a a grande mestra do futuro[xxvi]. Por mim, por mais que a objectividade seja um horizonte inalcançável mas sempre a perseguir, a assunção honesta donde estamos a olhar tem de, necessariamente, ser uma obrigação.

 

Bibliografia

ASSIS, Arthur Alfaix – Alexandre Herculano entre a imparcialidade e a parcialidade. in História da Historiografia – International Journal of Theory and History of Historiography. vol. 13 n. 32. Ouro Preto: Sociedade Brasileira de Teoria e História da Historiografia / Universidade Federal de Ouro Preto / Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2020, pp. 289 – 329.

CARVALHO, Joaquim Barradas de – A explicação de Portugal de Alexandre Herculano. in Revista de História. vol. 48 n. 97. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Março de 1974, pp. 201 – 229.

CÍCERO – De Oratore I, II. Londres / Cambridge: Harvard University Press, 1967.

HERCULANO, Alexandre – História de Portugal – desde o começo da monarchia até ao fim do reinado de Affonso III. Livro VII, Paris / Lisboa: Aillaud & Bertrand, [ca 1875].


[i] Alexandre Herculano cit. in ASSIS, A.A. – Alexandre Herculano entre a imparcialidade e a parcialidade, p. 296.

[ii] Augustin Thierry cit. in CARVALHO, J.B. – A explicação de Portugal de Alexandre Herculano, p. 210.

[iii] François Guizot cit. in CARVALHO, J.B. cit. ii, p. 209.

[iv] Alexandre Herculano cit. in CARVALHO, J.B. cit. ii, p. 209.

[v] Alexandre Herculano cit. in ASSIS, A.A. cit. I, p. 302.

[vi] Alexandre Herculano cit. in CARVALHO, J.B. cit. ii, p. 203.

[vii] Teófilo Braga cit. in ASSIS, A.A. cit. I, p. 304.

[viii] François Guizot cit. in CARVALHO, J.B. cit. ii, p. 212.

[ix] CARVALHO, J.B. cit. ii, p. 208.

[x] Alexandre Herculano cit. in CARVALHO, J.B. cit. ii, p. 206.

[xi] Alexandre Herculano cit. in CARVALHO, J.B. cit. ii, p. 207.

[xii] Joaquim Barradas de Carvalho cit. in ASSIS, A.A. cit. I, p. 316.

[xiii] Alexandre Herculano cit. in CARVALHO, J.B. cit. ii, p. 207.

[xiv] ASSIS, A.A. cit. I, p. 298.

[xv] Alexandre Herculano cit. in CARVALHO, J.B. cit. ii, p. 204.

[xvi] CARVALHO, J.B. cit. ii, pp. 228 – 229.

[xvii] ASSIS, A.A. cit. I, p. 303.

[xviii] ASSIS, A.A. cit. I, p. 300.

[xix] HERCULANO, A. – História de Portugal. Livro VII, p. 90. -

[xx] ASSIS, A.A. cit. I, p. 294.

[xxi] Marcelino Menéndez Pelayo cit. in ASSIS, A.A. cit. I, pp. 316 – 318.

[xxii] ASSIS, A.A. cit. I, pp. 308 – 310.

[xxiii] ASSIS, A.A. cit. I, pp. 293 – 296.

[xxiv] ASSIS, A.A. cit. I, p. 318.

[xxv] CÍCERO – De Oratore I, II, pp. 223 – 224.

[xxvi] Alexandre Herculano cit. in ASSIS, A.A. cit. I, p. 319.


 

Comentários