História do Judaísmo 1 – Os exílios – Egipto e Babilónia – e o Judaísmo.
Procurar-se-á neste trabalho, a partir dos dois primeiros momentos de diáspora judaica, compreender a medida em que estes foram formadores do que haveria de ser uma identidade especialmente tenaz e resistente[i] ao longo de, literalmente, milénios; tentando pelo caminho identificar os personagens centrais nessa construção colectiva.
Desde o início, desde o patriarca Abraão, estes judeus de algures entre o Eufrates e o Nilo são um povo específico com ideias raras: a noção de um só Deus (mesmo que ainda não o Deus único) com quem se tem um pacto pessoal[ii] por teres procedido dessa maneira, abençoar-te-ei e multiplicarei a tua descendência[iii] é algo único no período e na região. Rara é também a relação que os judeus vão estabelecer com os dois períodos diaspóricos: se o do Egipto começa como emigração voluntária e acaba em fuga, o da Babilónia começa como deportação acorrentada e resulta em libertação, uma migração má e outra boa, da primeira têm de se purificar, da segunda vão trazer um definitivo monoteísmo[iv].
A emigração económica para o fértil Egipto sob a protecção de José, figura possivelmente inspirada em Bay, o extraordinário chanceler cananeu de Séti II[v], começa auspiciosa mas redunda numa servidão descrita na Bíblia como escravatura[vi], mas que provavelmente seria mais a corveia das grandes obras raméssidas[vii] e é aí que surge o segundo grande patriarca: o mesmérico Moisés, com quem Deus fala como a um amigo[viii]. Johnson chama-lhe o eixo à volta do qual tudo roda[ix], líder duma ascensão tão moral como topográfica[x], Moisés estenderá o pacto pessoal de Abraão a toda uma nação, a partir daí eleita, pela fixação dos limites desse pacto por escrito (Josefo di-lo o inventor da palavra “lei”)[xi], abre a porta à, mesmo que frágil, liberdade da terra prometida[xii] e fomenta uma tendência democrática numa estrutura teocrática, com longa sombra na cultura[xiii]. Munido duma lei em que todo o crime é pecado e todo o pecado crime[xiv], à entrada de Canaã, é justo que pergunte ao povo: que outro povo há tão grande, que tenha um Deus como o nosso que nos atende quando o invocamos?[xv]
Instila também um racionalismo na teologia judaica que, passo a passo, a empurrará a um puro monoteísmo de um Deus escondido[xvi] mas universal, omnipotente, infinito, ubíquo e logo irrepresentável[xvii]. Um Deus zeloso[xviii] e exigente que à medida que a monarquia limitada[xix] se impõe e, no que virá a ser uma recorrência, entra em tensão com as exigências da Lei[xx] e deixa a prosperidade trazer a corrupção[xxi], inspirará as próximas duas figuras fulcrais na construção do judaísmo: Isaías e Jeremias.
Oscilando entre a ameaça sereis devorados pela espada[xxii] e a angústia a nossa ignomínia nos servirá de coberta[xxiii], aos extremos da fúria a minha palavra seja fogo e este povo seja lenha[xxiv] e da depressão pacto com a morte, aliança com o abismo[xxv], as duas cassandras judaicas é em vão que advertem contra a catástrofe que fará de Nabucodonosor instrumento de castigo divino[xxvi], dum Deus que para além de zeloso, já é único[xxvii].
Cumprida a catástrofe, Isaías já assassinado e Jeremias levado a contragosto para o Egipto, é no exílio babilónico que emerge o próximo elo da cadeia de patriarcas que nos lega o Judaísmo tal como o conhecemos: Ezequiel. Um povo novamente sem terra nem independência política, derramado das margens do Nilo às do Eufrates, com a identidade e especificidade mais ameaçadas do que nunca[xxviii], agarra-se a um zelo perante a Lei tão rigoroso como o da sua divindade, o exílio fortalece a disciplina religiosa[xxix]. Longe e destruído o Templo de Salomão, esta disciplina exerce-se menos pelo rito do que pelo estudo dos livros ciosamente transportados por sacerdotes e escribas; Ezequiel, apesar do seu estilo estrambólico, é expresso: abri então a boca e Ele deu-me o manuscrito a comer “alimenta-te e sacia-te com este manuscrito” comi-o e ele foi na minha boca doce como o mel[xxx]. Não sabemos exactamente quanto da Torá foi escrito antes e depois da queda de Jerusalém[xxxi], mas é certo que entre a destruição do primeiro e o erguer do segundo Templo este compacto de teologia, história, lei, sabedoria, poesia, profecia, consolo e conselho se torna no âmago e pilar da identidade judaica, se torna num sagrado ainda mais facilmente transportável que o antigo tabernáculo da Arca[xxxii].
Derrocados os neo-babilónios face aos aqueménidas de Ciro, o ungido do Senhor[xxxiii], vêem-se os judeus na liberdade de regressar à Judeia. Esdras e Neemias reconstroem uma versão mais modesta do Templo[xxxiv] enquanto, armados com o novo cânone e a sinagoga[xxxv], impõem um rigor homogeneizador que apresentam falsamente como primigénio, num processo amplo e inclemente com as contaminações (étnica e religiosa) dos que nunca chegaram a ser exilados[xxxvi]; já dizia Salomão: a multidão dos sábios é a salvação do mundo[xxxvii].
Mas, a bem e a mal, este segundo exílio que lhes dissolve as tribos[xxxviii], lega-lhes a obsessão da escrita e com o escrito[xxxix]; uma obsessão que lhes casa a identidade com um cânone que, nunca produzido nos momentos de sucesso, é uma epopeia de divisão, traições, tumultos, fraudes, atrocidades, desastres, transgressões e derrotas, um permanente pressentimento de iminente aniquilação, um Livro que, mais do que assumir o pior, o prepara. Um Livro que nos avisa: no princípio Deus criou o homem, e entregou-o ao seu próprio juízo[xl].
BIBLIOGRAFIA
Bíblia Sagrada. Lisboa: Difusora Bíblica (Missionários Capuchinhos), 1988.
BIETAK, Manfred; RENDSBURG, Gary A. – Egypt and the Exodus. in Shanks, Hershel (ed.) Ancient Israel – from Abraham to the roman destruction of the Temple. Washington: Biblical Archaeology Society / Prentice Hall, 2011 [1999], pp. 17 – 58.
JOHNSON, Paul – A History of the Jews. London: Harper Collins, 2006 [1987].
SCHAMA, Simon – A História dos Judeus – à procura das palavras 1000 a.C 1492 d.C.. São Paulo: Companhia das Letras, s.d. [2013].[i] JOHNSON, P. – A History of the Jews, pp. 3 – 4.
[ii] JOHNSON, P. cit. I, p. 17
[iii] Génesis 22: 16 – 17.
[iv] SCHAMA, S. – A História dos Judeus, pp. 23 – 24.
[v] BIETAK, M.; RENDSBURG, G.A. – Egypt and the Exodus, pp. 26 – 27.
[vi] Êxodo 1: 11 – 14.
[vii] BIETAK, M.; RENDSBURG, G.A. cit. v, pp. 27 / 32.
[viii] Êxodo 33: 11.
[ix] JOHNSON, P. cit. i, pp. 26 – 27.
[x] SCHAMA, S. cit. iv, p. 18.
[xi] JOHNSON, P. cit. i, pp. 32 – 33.
[xii] JOHNSON, P. cit. i, p. 19.
[xiii] JOHNSON, P. cit. i, p. 45.
[xiv] JOHNSON, P. cit. i, p. 33.
[xv] Deuteronómio 4: 7.
[xvi] Isaías 45: 15.
[xvii] JOHNSON, P. cit. i, pp. 38 – 42.
[xviii] Êxodo 34: 14.
[xix] JOHNSON, P. cit. i, p. 51.
[xx] JOHNSON, P. cit. i, p. 68.
[xxi] JOHNSON, P. cit. i, p. 84.
[xxii] Isaías 1: 20.
[xxiii] Jeremias 3: 25.
[xxiv] Jeremias 5: 14.
[xxv] Isaías 28: 15.
[xxvi] Jeremias 25: 9 – 10.
[xxvii] Isaías 44: 6.
[xxviii] SCHAMA, S. cit. iv, p. 54.
[xxix] JOHNSON, P. cit. i, p. 83.
[xxx] Ezequiel 3: 2 – 3.
[xxxi] SCHAMA, S. cit. iv, p. 53.
[xxxii] SCHAMA, S. cit. iv, pp. 46 – 47.
[xxxiii] Isaías 45: 1.
[xxxiv] SCHAMA, S. cit. iv, p. 39.
[xxxv] JOHNSON, P. cit. i, p. 96.
[xxxvi] SCHAMA, S. cit. iv, p. 45.
[xxxvii] Sabedoria 6: 24.
[xxxviii] JOHNSON, P. cit. i, p. 82.
[xxxix] JOHNSON, P. cit. i, p. 88.
[xl] Eclesiástico 15: 14.
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