As Mariquinhas - Alfredo Marceneiro, Amália Rodrigues, Hermínia Silva e Fernando Maurício.
Começo a ouvir a tia Hermínia e às tantas canta-me a
Mariquinhas dela e lembro-me desta verdadeira saga que, na evolução da versão,
vai refletindo a maneira como o povão do centro de Lisboa foi vendo a
situação... esta é daquelas onde o “isto é uma grande metáfora” se aplica
mesmo! Ainda por cima cantado pelos maiores quatro fadistas do século XX (sem
discussão):
o primeiro passo, a génese, é do Marceneiro, o Rei (escutar
com cuidado, só ler o resto depois):
aqui tens a Lisboa magana do princípio do século, a
Mariquinhas tem uma casa de má fama, numa rua bizarra, cheia de “amigas”,
guitarras em vez de pianos, que se pelam pelas cantigas, casa cheia de gente
colorida e esquisita, cheia de rendas cheia de fitas, que se quer fazer notada,
mas singela, mal mobilada, que no fundo não vale nada o tudo da casa dela (é o
povo), as vizinhas espreitam para ver os maus modos mas ela tem por pirraça
tabuinhas nas janelas. O fado é marginal e favelado, um perigo em si mesmo que
bonito.
Depois vem a tia Amália com “Dar de beber à dor”
e está tudo tão mudado que nem vi as tabuinhas! O tempo
cravou as garras que já nem espreitam as vizinhas, a farra e alegria na pobreza
substitui-se por uma casa de penhores (estás a ver o que são os penhores, não
estás?! o Cash Converter... onde a miséria se espreme), as janelas garridas são
agora uma cercadura às voltinhas (grades para proteger o comércio), perderam de
todo a graça, pois chega a esta desgraça a casa da Mariquinhas. Venderam a casa,
transformaram-na no prego, para isto mais valia terem-na mandado para as
alminhas, ou seja, se fosse para fazer da canção, pop de propaganda, mais valia
dinamitá-la. As recordações do calor afogo eu em ginginhas diz a Amália.
Mas então temos a tia Hermínia... a Hermínia já era uma
vedeta quando a Amália ainda vendia flores no Rossio, depois a Amália torna-se
uma estrela e a Hermínia resiste no Parque Mayer, a Amália torna-se uma
superstar internacional (com a Hermínia presa cá porque tinha medo de andar de
avião) e sente-se absolutamente ultrapassada quando a Amália, com franceses e
poetas intelectuais como o David Mourão-Ferreira ou o Camões lhe transformam o
fado debaixo dos pés... e ao “Dar de beber à dor” a Hermínia responde com o
“Dar de beber à alegria” onde goza abertamente com a revolução que a Amália
estava a imprimir ao fado:
a tia Hermínia serviu muito à reacção artística mas a
rivalidade era muito mais pessoal do que outra coisa, Anda Pacheco, picadinho!!
a Mariquinhas voltou e está tão linda!! a comer carapaus a 320 escudos o quilo
(uma fortuna em 1980), o prego foi-se, as tabuinhas voltaram, que é como quem
diz que à entronização do fado como canção nacional pelo Estado Novo tardio e à
Amália como ícone, sucedeu o 25 de Abril, e o fado (canção associada ao
fascismo, atirada para o caixote de lixo da história) voltou à alegria da
pureza original do Marceneiro, marginal e singela. A Mariquinhas, que andou com
a Hermínia na costura, ri-se dos “protócois” do Pedro Homem de Melo (um
daqueles intelectuais da RTP2 amigo da Amália, que queria ensinar coisas ao
povo).
E como corolário desta tendência reaccionária do fado
lisboeta temos o enorme Fernando Maurício (aqui com o Francisco Martinho):
facção apocalíptica: ninguém sabe da Mariquinhas, a casa foi
leiloada, o recheio está à venda, venderam-lhe as tabuinhas! Coitadinha!!! O
fado foi irradiado do discurso nacional, herança do fascismo, empurrado para um
escuro mais marginal que o folclore, por abaixo-assinados, intimações e
penhoras (tudo sintaxe de estado de direito estranho à poética habitual do fado
note-se!)... nem sequer houve cambão porque eram coisas mesquinhas! O fado
vê-se definitivamente devolvido ao lumpen lisboeta... acha o Fernando Maurício,
coitadinho!!
Sem saber da Bia e do Nuno Bragança e da Mísia, que o
continuaram a cantar nos tempos escuros; ou da Mariza e da Ana Moura que o reabilitaram; ou do Camané, da Aldina Duarte e da Raquel
Tavares que o confirmaram
como algo vivo... Hoje.
só para acabar (fim de lição), a Bia e Ana Moura “Meu Corpo”
(a tua irmã preferia alguma coisa da Aldina D):
“...quem fica é que se lembra toda a vida...”
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