“O que é que os portugueses têm na cabeça?” Marisa Moura, 2014.

Ora este foi complicado (a tua mãe faz-me cada uma!)... estes livros sobre “o Portugal” têm dois tipos normalmente: o ensaio fundo e pensado, pesporrente e carregado de auto-importância (a Maria Lamas, o Eduardo Lourenço, o Gil..) e o livro-piadola, que desfia historietas com mais intenção de nos fazer rir de nós próprios do que provocar propriamente a auto-reflexão... pelo meio tens as crónicas do Expresso do Miguel Esteves Cardoso que conseguiam melhor do que todos os anteriores ambos os objectivos: fazer-nos rir enquanto provocavam a auto-reflexão colectiva... mas isto aqui é um bicho diferente.
Com a capa que tem, amarela e apalhaçada, achei que era livro-piadola.. mas depois o bicho tem algumas 300 páginas num tipo pequeno e não podia ser por isso agora como ia para o Algarve e sabia que Sebastian Barry estava nas últimas meti-o no saco e foi lá em baixo que me apercebi que o bicho era mesmo diferente.
A tipa queria fazer uma tese (como o Lourenço ou o Gil ou o Pascoaes) mas pensa e trabalha como a jornalista que é, ou seja, em vez de argumentar atira-nos com factos... e isto é novo e óptimo! A minha primeira reacção é de entusiasmo, comecei a devorá-lo rapidamente, isto era do melhor que os jornalistas têm: uma martelada para cada prego, a memória organizada com os exemplos necessários que só a maltinha da redacção ainda se lembra... isto é muita bom, achei eu, sem sequer me incomodar com a realização IMEDIATA de com quem estava a lidar: esta maltinha civilizada alfacinha que por ter ido uma vez a New York e ter um amigo homossexual se acha de esquerda mas é estruturalmente de direita e ferozmente burguesa... mas isso não é um problema à partida, eu amo o Miguel Esteves Cardoso de morte e mais reaccionário só no partido nazi e tem de ser completamente analfabeto.. ria-me quando ela desconseguia falar do Saramago sem ser como “o escritor comunista Saramago” mesmo quando estava a falar do Convento de Mafra ou quando me apercebi que ela ainda acredita na tese do contra-golpe para o 25 de Novembro (em 2014!! coitadinha) o que depois de todos os envolvidos se desbroncarem (do Jaiminho ao Eanes que aparentemente só o Carlucci é que respeita a omertà devida a números destes) para acreditar é questão de fé, de dogma religioso; mas pronto, em rigor, isso ainda era um problema lá dela...
O drama foi que com os lados bons do jornalismo vieram também os maus: total e descarado desconhecimento histórico por mais que depois façamos um despudorado cherry picking ao que nos interessa, a incapacidade de ler estatísticas (um clássico tão clássico que quase já não dói), a inabilidade em distinguir caso e padrão e finalmente o pior de todos: o bendito vício de chegar à cena com a peça já escrita.
O drama recorrente de no momento em que estamos a sair da redação para o campo já termos o acontecimento arrumado numa caixa qualquer e depois é só sublinhar as matizes que reforçam aquilo que achávamos anteontem e downplay tudo o que vá contra o guião com que chegámos ao terreno, no caso da Marisa é especialmente complicado porque ela não é especialmente original: os portugueses são malandros e madraços e burros e chóninhas e ciganos e choramingões, pois está claro... e é sempre um “portugueses eles” na terceira pessoa do plural.
E isso é outra coisa que me encabrou imediatamente essa dos portugueses “eles”, porque o Fernando Gil, o Jorge Dias, o Pascoaes, a Lamas, o Antero e o Eça, até o MEC escrevem sempre no portugueses “nós”, para o bem e para o mal o gajo que olha é um de nós; só luminárias como o Eduardo Lourenço, o Mário Cláudio ou a Marisa é que pairam sobre os defeitos partilhados, apontando-se-no-los por mera caridade... mas mesmo assim não foi aí que eu saltei.
Eu só saltei quando, bem depois de me aperceber que ela queria “provar cientificamente” que todos os auto-ataques com que nos auto-castigamos são merecidos, só saltei quando me apercebi como a submissão às regras de fora do iluminado interno (o Fanon ou o Foucault explicam) a levam ao pecado intolerável: que é gozar com a miséria... e aí (página 280 e tal) foi mesmo:
puta que te pariu, adeus!

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