“S.P.Q.R. a History of Ancient Rome” Mary Beard, 2015 (lido por Phyllida Nash).

SENATVS POPVLVSQUE ROMANVS que é como quem diz: o Senado e o Povo de Roma.
Eu sei que às vezes tu a leres isto pode parecer que eu sou um bocado simpático com as críticas que faço ao que “consumo”.. que é tudo bom, e a não perder e tens de ver e se calhar às vezes dá uma sensação à Mário Augusto (sabes? o anti-crítico de cinema que gosta de todos os filmes que vê, desde que o deixem ir à América fazer uma “entrevista” “exclusiva” com uma das estrelas, aqueles negócios de 5 minutos por cabeça num quarto de hotel em que os “jornalistas” se alinham e perguntam 4 perguntas de rajada às estrelas, uma do Mário Augusto sendo necessariamente se já veio a Portugal, se gostava, se sabe onde isto é? no tom mais desesperado possível), e isso tem muito a ver com o facto de eu já ser velho e escolher muito mais criteriosamente como gasto o meu (pouco) tempo (que me resta)... há vinte anos eu li um livro inteiro do Dan Brown e outro (quase inteiro) da Paula Bobone só para confirmar os meus pressupostos.. hoje não me passaria pela cabeça um tão absurdo desperdício de tempo.
Posto isto, eu a Mary Beard (uma eminentíssima classicista britânica) já conhecia da tv: papei-lhe duas ou três séries daquelas documentais históricas britânicas muita boas e aquilo era tudo bom... uma velhinha muito desempoeirada com uma perspectiva agressivamente complexa e com algum humor, tudo joia melhor era difícil, mas nunca a tinha lido.
Depois vi-lhe um ou dois papers apresentados em contexto académico (hoje em dia toda a gente filma tudo e tudo acaba no youtube é só procurar) e mais impressionado fiquei: o desempoeiramento, a erudição funda e sistemática, o humor seguro e o raciocínio surpreendente (“fora da caixa” diriam os bimbos) era ainda mais óbvios, mas mesmo assim ainda não a tinha lido.
E agora li (bem, tecnicamente ouvi, mas foi a versão) e como diria o Eça, ó menina...
Ela propõe-se tratar Roma do Rómulo ao Cómodo (que é como quem diz da fundação mítica da Urbe ao filho indigno do Marco Aurélio) o que de si já é um trabalho absolutamente titânico mal sabia eu o que é que ela ia mesmo fazer... Isto é um livro de História tal como deviam os livros de História todos ser... eu já li alguns, muitos, e este é o melhor de todos que eu já li, por um bocado a sério!
Isto é absolutamente espantoso: ela estabelece um parêntesis cronológico que justifica calando-nos progressivamente, depois segue suavemente a linha do tempo só para nos enganar, porque o que ela faz, em vez da cronologia factual que seria de esperar (e que como ela nos explica ternamente, não seria assim tão interessante mesmo que fosse possível, o que não é nem nunca vai verdadeiramente ser), é um bullet points de história das ideias da Roma clássica; uma verdadeira antropologia à distância (desta vez temporal) em que ponto por ponto ela trata um assunto de cada vez, suavemente, embedded na cronologia que ela finge seguir e sempre solidamente ancorada num gajo qualquer que sai do chão arqueológico ou da literatura coeva conhecida... tudo tem carne e cara e nome: o Cipião Barbatus e as cartas do Cícero e as anotações nas placas de cera da Muralha de Adriano ou as pragas em folhas de chumbo de Bath; e ponto por ponto ela trabalha classe, rito, direito, género pim pam pum por ali afora como se fosse doce de amora espalhado num scone... é ABSOLUTAMENTE ESPANTOSO.
Se nunca ouviste falar nos romanos aprendes duma vez mais do que muito classicista que eu conheço, se és um profissional da coisa tens de te sentir esmagado pela habilidade o talento, se és um amador algo batido como eu sobra-te o emaravilhamento.
É espantoso... eu pensava que o máximo, que o mais fundo que conseguíamos mergulhar nos romanos era com o Pierre Grimal, uma alma que vivia e nos fazia viver no meio da Roma clássica com toda a facilidade; o máximo que eu pensava que a escrita historiográfica nos conseguia transportar era com o Jacques Le Goff, o medievalista final, o tipo que conseguia pegar na cabeça dum prego duma armadura do séc. XII e fazer-nos saborear o cheiro do que se estava a assar na cozinha do castelo.
Este é muito provavelmente o melhor livro de História que eu já li!... e é para toda a gente. O neófito, o profissional ou o amador como eu...
A Mary Beard num só livro ultrapassou ambos (o Grimal e o Le Goff) apesar deles não terem descido um milímetro no meu panteão do que é um historiador (um antropólogo do passado, um cientista social) e no entanto ela passou à frente e eu só lhe li um livro... espantoso! A erudição, a habilidade, o talento, o raciocínio novo e atento... espantoso, live-changing!
E pensar que quando saiu o “Meet the Romans” na BBC (uma das séries que eu lhe vi) a única coisa que o crítico televisivo do “Sunday Times” teve para dizer (e lembra-te que o “Sunday Times” é suposto ser quality press) era que ela era “demasiado feia para ser filmada”.

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