“Alma” Tiago Correia, 2020.


Aaahh eu gosto de falar contigo não logo a seguir.. mas um dia ou dois depois. Assim escrevo muito menos.

No limite gostei da peça, mas mesmo no limite e muito com o peso de não ir ao teatro há meses e meses e meses e estar em dolorosa ressaca; mas foi por pouco e tu carregaste o grosso disso.

Eu faço aqui uma pausa porque eventualmente tenho de discutir isto comigo mesmo (mais do que contigo até por que para ti acaba por ser igual), mas isto não é simples; por muito central e umbilical que seja a minha relação contigo, eu já tinha uma relação com o teatro antes de tu seres deitada à luz, e acho-o uma arte muito específica, muito anormal entre a necessária anormalidade que são as artes, já te disse isto antes, as artes são muito importantes e bonitas e tal, mas o teatro sempre sempre sempre que é minimamente competente é religioso no sentido original da palavra ou seja re-ligar a realidade profana com a realidade dum sagrado criado ali (temporariamente) à nossa frente... e é claro que isso é verdade sempre para qualquer arte, mas a dimensão social do teatro, em que estamos todos autores oficiantes espectadores presentes é bastante única (tens a música ao vivo, mas mesmo essa muda o freio e em geral a escala é maior o que aumenta a distância, a tosse dum gajo a duas filas do fim da sala não mexe no concerto do José Cid da mesma maneira que mexe com a peça do João Grosso no Dona Maria e essa fragilidade é a prova da sacralidade da coisa)... mas anyway dizia eu: o drama do “não-é-por-ser-nossa”.. que não é um drama a sério mas deixa a pergunta na mesma: e se não fosses tu.

Isto é um drama irresolúvel... eu parto a coisa em peças mais manejáveis (texto, cenografia, direção de actores, figurinos, iluminação, actuações, som...) mas vai haver aqui sempre uma margem de problema que se me visse a escrever crítica teatral me haveria de obrigar a uma declaração de interesses antes de entregar o artigo “fica o leitor avisado que nesta peça actua, no papel de desgraçadinha de botas, alguém a quem o articulista nutre um amor entre a germanidade e a filiação, algures entre aí...”

Posto isto... isto é uma peça que se acha diria a tia Isabéu (porra! o título é “ALMA”.. o título mais pesporrente desde o “Inferno” do Dante... e isso era a porra do DANTE!)... a maneira como se tenta ser poético falando abstractamente é de menino... a verdadeira poesia vem mais rapidamente das pedrinhas da calçada, do olhar do merceeiro a controlar os pombos junto às caixas da fruta, do padrão da bata da velhinha que faz limpezas no cabeleiro do lado (a poesia é universal porque é específica, não porque é conceptual!)... o retrato da depressão clínica (ao rigor da tentativa de suicídio) como “o mundo é muito chato porque não se apercebe como eu sou especial” que passa rapidamente logo que encontro uma alma gémea tão “especial” e incompreendida como eu diz mais sobre a auto-estima da porra do autor do que sobre o mundo; as maleitas sociais a servir de escora de recurso (a violência doméstica do amigo, a alienação parental do desgraçadinho acamado, a namorada dos dois dormir com a malta toda, os telemóveis e as redes sociais, a tua andar ali entre a vagabundagem e a prostituição infantil) também só dão para entre o revirar de olhos e um “poupem-me!” (um francês de gema largaria um sonoro “bóf!!”), a maneira como toda a gente fala meio esquisito (nunca se percebe se estamos a ser realistas ou oníricos)... e a mãezinha ex machina no fim... francamente!

Também tenho problemas específicos com a cenografia e a iluminação, mas isso vai de somenos quando a coisa nasce torta.

Especificamente tu... tu estás forte, já eras forte e vais melhorando cada vez que te deixas derramar mais emoção no palco, claro que com o amigo sarado tinhas o melhor texto (bem mais espessos que o desgraçadinho acamado ou a namorada da malta) e fizeste tudo e é só isso que podes fazer, foi uma pena não te vermos 1/3 do tempo (quem fez o “desenho de luz” merecia um calduço bem assente) porque sozinha acordaste e silenciaste ao mesmo tempo a plateia toda... e esse é o trabalho...

em rigor é duro não poder fazer mais do que o texto deixa, mas essa é a canga que te calhou,

antes a ti que a mim.

um beijo com um obrigado.

Claro que nada disto te vai safar de ouvir “entre o contentor do lixo e o plátano” enquanto eu e o Filipe vivermos.

 

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