“Painéis de São Vicente de Fora – Visão Poética” Manoel de Oliveira, 2010 & o Nuno Gonçalves que, coitadinho, não tem culpa nenhuma.
Ora ora ora...
estou eu muito sossegadinho a preparar-me para começar os processos do almoço e acendo a televisão (a televisão cá em casa não se liga, “acende-se” como o lume) para ficarem as notícias a arder ao fundo enquanto cozo arroz e ponho a mesa e assim... como ainda não começaram as notícias deambulo um bocado e tropeço, no segundo canal, nesta... “pérola”.
Ora isto é uma curta (16 minutos) DO MESTRE (superlativo irónico), a expensas do Estado (a ficha mete a RTP, Serralves e o Turismo de Portugal) sobre o que é que ele tinha a dizer sobre os Painéis... eu apanho a coisa a meio (depois meti para trás, 3 vezes, para ver outra e outra vez porque às vezes é preciso) mas reconheço-lhe imediatamente o estilo rígido chatarrão de filmar e as performances robóticas (olhar especado no espectador, tom tanto mais grandiloquente quanto maior a banalidade do que é dito..) mesmo antes de lhe reconhecer o neto (o Trêpa) vestido de São Vicente...
E, aside, falemos de como os figurinos são a melhor e mais luxuosa coisa que eu vi em ficção histórica nacional... só aí esta brincadeira deve ter sido uma puta duma nota!! Mas afinal é o MESTRE...
Mas voltando à vaca fria: eu se o Manoel tento simplesmente evitar, já que não partilho da idolatria que a intelligentsia nacional lhe devota, já os Painéis são outra conversa. Os Painéis não são simplesmente um quadro muito interessante, mesmo misterioso, ou uma obra-prima da pintura primitiva nacional... eu francamente acho que enquanto tiro único, enquanto objecto visto descontextualizadamente (e não num contínuo histórico ou no conjunto da obra dum mestre) é provavelmente o maior e mais importante e melhor e mais interessante (fascinante) quadro que a porra da nação produziu... e eu sei a enormidade que estou a dizer, mas pensa lá: arranja-me um Amadeo (um quadro só), um Almada, um Josefa de Óbidos, um Pomar, um Paula Rêgo ou Vieira da Silva ou Grão Vasco ou Cruzeiro Seixas ou Columbano ou Domingos Sequeira ou Cargaleiro ou Graça Morais ou Santa-Rita Pintor ou Aurélia de Souza que rivalize com esta brutalidade de óleo sobre tábua?!
E por isso fiquei a ver...
Ora aqui o Manoel tem uma tese (como eu, como toda a gente que pousou os olhos com atenção neste quadro pelo menos nos últimos 100 anos, porque este quadro é tão esquisito que obriga a ter uma tese..) mas falemos da do Manoel:
O Manoel parte de dois pressupostos discutíveis para construir tudo o resto: o primeiro é que o homem do chapelão no “Painel do Infante” é o Infante D. Henrique; e o segundo é que o tipo que olha para direita no “Painel dos Cavaleiros” é um “árabe” genérico (por causa do capacete estilo mourisco)... ora a primeira asneira é um clássico e a segunda meio específica (provavelmente porque extremamente necessária para onde o Manoel quer chegar) mas eu discordo das duas.
Esta primeira identificação do homem do chapelão como o infante D. Henrique deve-se em grande medida a um frontispício dumas “Crónicas dos Feitos da Guiné” do Zurara da Biblioteca Nacional de Paris onde o mesmo tipo (claramente o mesmo tipo) surge por cima do mote do Henrique (“talent de bien faire”)... é este retrato que leva ao vermos o homem do chapelão como o Henrique, chamarmos “Painel do Infante” ao “Painel do Infante” (os nomes tradicionais dos painéis são séc. XIX melhor hipótese) e o homem do chapelão se ter tornado o infante dom Henrique em toda a iconografia posterior vem daí... agora qual é o problema? O problema é que o retrato é mais antigo que a “Crónica” em que foi colado, supondo-se que foi “reciclado” duma publicação anterior, sendo que o mote não faz parte do retrato original... e quem é que tinha uma série de livros publicados (e francamente menos interessantes para o mercado editorial da época?!) como o “Leal Conselheiro” ou o “..Cavalgar a Toda a Sela” donde podia ter sido recortado o retrato para usar no Zurara?! O nosso amigo Dom Duarte, o falecido rei, irmão do Henrique, que alguma boa alma em França pode muito ter achado proximidade suficiente para usar a cara dum, para ilustrar o outro.
Mas admitemos que isto não chega.. olha para o quadro, no dito “Painel do Infante” tens um monte de cortesãos ao fundo e São Vicente ao meio, à volta em primeiro plano tens o núcleo central da família real: a ajoelhar-se à direita D. Afonso V, à frente dele ajoelhada a rainha Isabel de Coimbra (prima direita de Afonso, filha do infante D. Pedro), atrás do rei à direita um puto que é o filho e herdeiro destes dois: João, o futuro João II; por detrás da rainha uma velha de luto (o branco ainda é prevalente como luto nesta altura): a rainha-mãe Leonor de Aragão, mãe de Afonso que, note-se, à altura da produção do quadro está morta há mais de 20 anos e em frente (diz-nos uma iluminura cortada e recolada em Paris) o tio do rei o infante D. Henrique?!..
Porquê este tio? O rei tem quatro tios do lado do pai que chegam a adultos e o Henrique não é (nem de longe) o mais importante na altura (esse seria o D. Pedro, o tio com star-quality, regente e sogro do rei, que foi preciso uma autêntica guerra civil para fazer baixar a bola)... pode fazer sentido para os portugueses pós expansão ter o Henrique ao lado do futuro João II no centro do quadro, mas este quadro foi feito por e para os portugueses de 1470.. antes da “gesta heróica” toda.
Portanto quem sobra ser o homem do chapelão?! ... Para mim parece-me mais que lógico, evidente mesmo, que é o D. Duarte, o pai do rei frente à mãe do rei “... ahh mas ele morreu mais de 30 anos antes do quadro ser pintado” pois está bem, mas nem um quadro é uma fotografia nem o facto da mãe do rei (a Leonor) ter morrido mais de 20 anos do quadro é impedimento para ela aparecer... e não é mais lógico neste painel central aparecer o rei, a mulher do rei, o filho do rei, a mãe do rei e o pai do rei (em vez de um tio avulso, por mais que valorizado pela historiografia muito muito posterior)... e o facto dele ter morrido uma geração antes não explicará com simplicidade porque é que ele está vestido duma maneira tão diferente de todos os outros (o que sempre o fez saltar à vista um bocado)? É que a moda também mudava no séc. XV.. e aqueles chapelões à borgonhês em vez dos barretes que toda a gente está a usar em 1470/80 eram exactamente o que estava na moda 30 anos antes, quando o D. Duarte morre. E o retrato da “Crónica” da Biblioteca de Paris explica-se bem com a malandrice dum qualquer livreiro francês do séc. XVI, pega-se numa bela iluminura dum dos livros de D. Duarte que não está a vender, e faz-se um belo frontispício para a “Crónica da Guiné” com muito mais procura e pimba, temos um irmão (o Duarte) transformado noutro (o Henrique) e uma brutal confusão iconográfica para um país inteiro.
Mas eu disse que haviam dois pressupostos. O segundo é a do “árabe” que o Manoel vê no “Painel dos Cavaleiros”... ora esta é forçar a nota, porque devagarinho devagarinho o olhar da análise tem começado a aceitar que estes cavaleiros não são uns cavaleiros quaisquer. Estes quatro que (de frente para trás) vamos chamar cavaleiro roxo, verde, vermelho e preto estão carregadinhos de simbologia que os identifica, até mais acho eu, que cria um discurso sobre a história recente da dinastia.
A primeira coisa óbvia é que os três primeiros estão virados para o centro, bem vestidos de veludo e bem alimentados e o quarto (o “árabe” do Manoel) está a olhar para fora, magrelo e em roupa de campanha (couta de malha e o bendito capacete mourisco); os três primeiros têm espadas, mas a espada do roxo tem o pomo desalinhado em relação ao cabo e à guarda-mão (ou seja temos uma espada torta, má de usar ou mal usada); os dois primeiros (o roxo e o verde) têm cintos muito proeminentes, o do verde peito abaixo perfeitamente preso, o do roxo aberto e pendurado da espada torta; o cavaleiro roxo tem uma cruz sem parte de cima ao pescoço; o verde uma pérola; e o vermelho para além de estar de vermelho tem a espada ao ombro.
E quando juntas isto tudo é difícil não ver os quatro tios adultos do rei, de preto: Fernando, o infante santo, que morre em Fez depois de abandonado pela realpolitik dos irmãos (e assim se explica o olhar para o outro lado, o corpo esquálido, a roupa de campanha e o capacete mourisco); de vermelho João o condestável, mestre da Ordem de Santiago de Espada cujo símbolo é obviamente uma espada vermelha; e finalmente os dois da frente, os dois dos cintos símbolo da Ordem da Jarreteira... Pedro e Henrique, ambos cavaleiros da Jarreteira, mas qual é qual? O roxo tem a espada torta, o cinto da Jarreteira desapertado com a fivela pendurada e uma cruz ao pescoço sem parte de cima; o verde a jarreteira bem apertada, a espada direita e uma pérola (símbolo de perfeição) ao pescoço... sejam eles quais forem é gritante que o Nuno Gonçalves pinta o verde como o cavaleiro perfeito e o roxo como um cavaleiro falho... a minha aposta é que o verde é o Pedro das Sete Partidas e o roxo é o sacrossanto infante d. Henrique, o inventor da escravatura industrializada, o mano querido que não só deixou o Fernando em Fez como traiu o Pedro na Alfarrobeira (a história toda da Ínclita Geração tem muito que se lhe diga...).
Mas isto já são muito elucubrações minhas (não só minhas).. o ponto é que a tese do Manoel é a seguinte, o Nuno Gonçalves está a dizer-nos uma coisa com os dois painéis centrais, um o “do Arcebispo” em que o santo está de livro fechado rodeado de guerreiros e com a mão sobre o peito dum deles, que o Manoel interpreta como uma censura e uma ordem para parar; e um outro o “do Infante” em que o santo de está de “evangelhos” abertos (já voltamos a estes “evangelhos”) sinal de aprovação clara para o Manoel, rodeado pela família real com lugar especial para o “infante dom Henrique” do chapelão e o futuro João II... ou seja, que a velha política expansionista das armas (os guerreiros) via norte de África estava errada (o livro fechado) e a nova política expansionista (o “infante” e o futuro João II) era sim o verdadeiro caminho para a glória nacional...
Isto seria verdadeiramente espantoso porque implica que o Nuno Gonçalves, que eu acho um génio mas dificilmente um profeta, estava a adivinhar não só o dobrar do Cabo da Boa Esperança 10 anos depois, a chegada à Índia e ao Brasil 20 anos depois, como o estabelecimento do império intercontinental nas 9 gerações seguintes, como a selecção destes dois (o Henrique e o João II) como heróis da mesma pela historiografia nacionalista 500 anos depois... chiça penico diria a minha tia Cecília, que o homem era clarividente!
Não chegasse este nível de disparate e o Manoel, o MESTRE, vai mais longe ainda (não fosse este nível de nacionalismo patrioteiro suficientemente cringy..) e explica-nos como o “evangelho” aberto do lado dos “descobridores” significa que os portugueses levarão o evangelho a todos os continentes (definindo assim muito bem o que foi a expansão... desde que não perguntemos a quem a expansão foi feita)... claro que até aí o cabranote do Nuno Gonçalves lixa o MESTRE... é que se a primeira página é do Evangelho de S. João sim senhora, a seguinte é dum Missal de Pentecostes fazendo do livro um livro impossível como descobriu o Markl (não o inútil do filho, mas o Dagoberto historiador de arte, pai do Nuno).
E donde parte este lindo projecto de expansão da palavra do Senhor – último prego do Manoel – duma sociedade onde nos damos todos bem, há dúvidas?! Então neste quadro de corte até temos um árabe e um judeu em alegre convívio com o resto da malta aponta o Manoel... claro que o “árabe” é o dom Fernando do Painel dos Cavaleiros e o judeu (ainda que indubitavelmente judeu) do Painel da Relíquia, o gordecho de escuro com um livro nas mãos, só o sabemos judeu pela estrela de seis pontas bordada na beca. Harmonia racial e tolerância religiosa à élite do Douro.
Como se isto tudo não chegasse ainda levamos com o Dória de “Infante” (nem era filme do Manoel se não levássemos com o Dória) e o Trêpa de S. Vicente quase a rosnar que depois daqui tivemos um império “onde as raças não interessavam!!” num tom entre o paternalismo elitista à Rui Portugal e um senhor bófia a dar-nos com uma marreta nos cornos...
isto é de 2010 mas bem podia ser de 1930 e vir directamente do Palácio Foz.
E para acabar, corta para os Painéis outra vez e temos um gaiteiro e uns pauliteiros de Miranda (I shit you not) que tocam e dançam e traulitam porque.. porque sim, porque o Manoel era edgy ou assim,
fuck me if i know!
“Visão poética” a pilinha do gato! Este pedaço de merda é propagandazinha e da má, velhinha do caruncho para além de extremamente disparatada... Uma visão da História do tempo do Botas e do Ferro e do professor Mattoso (o António, não o bendito filho José coitadinho que se havia de benzer se ouvisse estes dislates)... tem 16 minutos e parece que me tiraram 16 anos de vida... foda-se lá o caralho expliquem-me como é que o Manoel é o indiscutido maior realizador português que já mijou num pote!!
No fim ainda me atrasou o almoço o cabrão DO MESTRE, francamente,
como diria o Cervantes: que filho duma saca de putas!!
Comentários
Enviar um comentário