“A estaca a que estamos atados” P3, 20 de Junho de 2016.
A ver novamente o “Metal e Melancolia” da Heddy Honigmann, desta vez atabalhoadamente apresentado pela Catarina Mourão na RTP 2 (e ainda dizem que não dá nada de jeito na tv... ninguém é obrigado a ver o Love on Top, não me lixem).
Chegamos à parte do taxista/economista que partilha a sua teoria explicativa da destruição da classe média no Peru; um puto peruanito surge no canto do enquadramento e finge que limpa o para-brisas do táxi, enfia a cara suja pela janela e mendiga uns trocos. O nosso economista bigodudo suspira a interrupção, resmunga um “vai ao próximo, não tenho!” mas o raça do miúdo continua a choramingar baixinho e a cagar o para-brisas com o trapo.
O bigodudo estica-se no assento, enfia a mão no bolso vazio e lá saca um sol para dar ao moço, ao mesmo tempo que solta aquele suspiro fundo que os tesos lançam sempre que se vêem obrigados a largar qualquer coisa aos verdadeiramente desgraçados, aquele suspiro fundo (e aparentemente transcultural) que diz “porra.. posso acabar de me queixar como me atiraram para a pobreza sem que um descamisado me venha lembrar dos que dela nunca saíram?!”.
A tia Heddy, na sua terrível eficácia holandesa, mantém o plano o suficiente para o garoto se ir e o nosso amigo da classe média descendente ter tempo de desviar o olhar para a esquerda, para cima, para a direita, para todos os lados menos de frente para nós, que o continuamos a olhar sem dó. Uma estranha mistura de compaixão e vergonha no olhar fugidio, como se fosse culpa dele dalguma maneira, uma culpa desmerecida que nos contamina.
A tia Heddy, que é terrível de boa no que faz, corta para uma sequência sortida da pior miséria das ruas de Lima nos anos 90: um bêbado ou maluquinho no meio da estrada a berrar contra os políticos “que nos fazem viver como animais”, cortada por um velhinho meio-cego que quase tropeça num vendedor de sortes com sua caixa e seu macaco de chapéu amarelo, enquanto por trás continuamos a ouvir a arenga do borracho.
A cena toda leva menos de minuto e meio. A realizadora não nos diz nada, não nos dá respostas... nem sequer uma pergunta específica, só aponta para a miséria e a relação que temos com ela e sussurra “olhai!”... é terrível, é (como se diria em castelhano de cartaz de tourada) terrorífico.
Torna-nos conscientes de como a mão ao bolso para a moeda ao mendigo é uma expiação pela cama quente e o jantar que nos aconchega a parte interna da barriga. Um pequeno momento de exorcismo da possibilidade da cena ser ao contrário, em vez de ser a minha a ir ao bolso, ser minha a estendida, miserável, suja de pedir.
“São sempre os que têm menos que com mais facilidade dão” repetimos nós a cada pacote de arroz que cai nos sacos brancos a azul-cueca do Banco Alimentar: disparate; não é facilidade, é necessidade!
Necessidade que vem de vermos, sabermos, sentirmos, cheirarmos a miséria que escorre discreta (envergonhada como que culpada) nas ruas donde somos. Sem muros altos de condomínio fechado é difícil manter o conto que os pobres são pobres porque são malandros, sem vidros fumados do alta-cilindrada é impossível desviar os olhos da miséria que se farta de trabalhar sem nunca chegar a ter o que comer a todas as refeições.
Esta miséria que é como a estaca do Llach, a que (com mais ou menos corda) estamos todos atados. Uma estaca que parece que é de sempre e para sempre mas que no fundo, por dentro, está podrinha de todo.
Mas que por mais podre que esteja não vai tombar por si, não vai cair com os trocos e pacotes de arroz que de olhos baixos damos uns aos outros. Vamos mesmo ter que puxar por ela... juntos.
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