“Cravos, os meus e os deles” lá “25 de Abril: o meu é, obviamente, o próximo” P3, 23 de Abril de 2014.
Pergunto ao director se me vai dar tema para a crónica; ele responde-me que não, mas se quero uma sugestão que pegue no meu 25 de Abril.
O meu 25 de Abril é um problema, é um problema porque eu nasci dois anos depois dos cravos e o meu 25 de Abril é feito de imagens de arquivo, cortejos apaziguados Avenida da Liberdade abaixo e histórias fragmentadas de família.
O 25 de Abril é dos meus pais como o fascismo foi dos meus avós: Salazar não me sugere nem rigor financeiro duma casa bem gerida nem cultura de excelência no ensino; Salazar para mim é a sardinha dividida por seis irmãos da minha avó Adília, é o meu avô Artur em Jacarepaguá durante 20 anos, é a escrita insólita de quem nunca foi à escola da minha avó Belandina, é a cama sempre quente que o meu avô Diamantino partilhava com outros trolhas beirões num quarto em Lisboa, é o meu tio António João em Angola a defender um Portugal de Minho a Timor (de que não conhecia o Minho, quanto mais Timor), é a rede que separava rapazes e raparigas no liceu da minha mãe, é o meu pai a comprar livros e discos proibidos por debaixo da bandeja e a descer aos saltos as Escadinhas do Duque para fugir à polícia que reprimia um 1º de Maio ainda ilegal.
Mesmo o 25 de Abril e o PREC, se extirpado da história que li, desagua no meu pai a tentar ver-se na multidão a preto e branco das imagens do Carmo, no meu avô a explicar ao piquete que vai caçar e não apoiar o Spínola no 28 de Setembro, na minha mãe à varanda a ver passar os caças do 11 de Março; são entusiasmos e aflições deles, foi e é a vida deles: dos que estiveram no Carmo e no primeiro 1º de Maio, dos que foram à Fonte Luminosa “defender a democracia”, passando pelos que tentaram “educar a classe operária” e se viram ultrapassados pelo 25 de Novembro. Lá em casa houve de tudo: democratas e saudosistas do salazarismo, católicos progressistas e crentes na “primavera” marcelista, retornados e marxistas-leninistas; e às vezes a mesma tia foi à vez, em momentos diferentes, coisas que nos parecem inconciliáveis.
E se isto é História tal como o saudoso Le Goff a definia: “lá onde está a carne humana é onde está a nossa caça”, não deixa de ser um longínquo país estrangeiro para a minha geração, alimentada a música pop e aspirações europeístas, que cresceu sem perceber muito bem as diatribes raivosas que despertavam Soares ou Rosa Coutinho, a confundir o Salgueiro Maia com o Otelo, sem perceber exactamente quem era o Barreto da Reforma Agrária dos murais descascados, perdida entre vinte cincos de Novembro, onzes de Março, vinte e oitos de Setembro e vinte e oitos de Maio.
E no entanto, quanto mais se explora este passado exótico, mais próximo ele nos parece do nosso presente; num paralelo com a mensagem dos espelhos dos carros “objects in mirror are closer than they appear” também aqui aprendemos que os objectos estão bem mais próximos do que parecem.
E estão mais próximos não só porque é a vida dos nossos pais e dos nossos avós, não só porque “Abril não se cumpriu” ou porque as continuidades com o antigo regime às vezes assustam, ou porque os portugueses, novamente aflitos, recomeçam a cantar a “Grândola”. Estão mais próximos porque a tensão basilar que animava os resistentes de ontem: a tensão entre os que vêem no status quo o melhor dos mundos possíveis e os que acreditam na humanidade como algo para além da soma do medo e da ganância dos humanos, se mantém.
E é por tudo isto que o meu 25 de Abril é, obviamente, o próximo.
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