HISTÓRIA DA IDADE CONTEMPORÂNEA 2 - A emergência dos fascismos no período de entre guerras.
Objetivos - leia com atenção o enunciado:
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Caracterizar o fascismo enquanto movimento e regime político;
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Problematizar a relação entre a afirmação do fascismo no período de entre guerras e o início da Segunda Guerra Mundial.
Trabalho a desenvolver
Escreva um ensaio sobre a responsabilidade do fascismo na eclosão da Segunda Guerra Mundial, partindo de um comentário às seguintes questões colocadas por René Rémond:
«A guerra estala numa Europa onde os fascismos estão largamente implantados. Haverá uma simples concomitância ou uma relação de causa a efeito entre a vitória dos fascismos e o desenrolar da guerra? Haverá um nexo lógico, natural, entre a natureza destes regimes e uma política externa belicosa? Noutros termos, uma política aventureirista, susceptível de conduzir ao risco supremo, fará parte da essência do fascismo?» RÉMOND, Réne – Introdução à História do nosso tempo. Do Antigo Regime aos nossos dias. Lisboa, Gradiva, 1994, p. 356.
TRABALHO / RESOLUÇÃO: A emergência dos fascismos de entre guerras.
Tentar-se-á neste breve ensaio compreender, partindo da análise de René Rémond, até que ponto o característico aventureirismo dos movimentos e regimes fascistas surgidos no entre guerras, contribuíram para o deflagrar da II Guerra Mundial; tentando ao mesmo tempo a espinhosa tarefa de lhes construir uma definição, circunscrevendo-lhes características comuns, se não essenciais.
É o próprio Rémond a apontar a inexatidão do olhar que vê na II Guerra Mundial a mera continuação da I, falando dum efeito cumulativo de factores para o que explodirá em Setembro de 1939[i]. Por mais que o punitivismo de Versalhes deixasse adivinhar logo em 1919 a semente de futuros conflitos, ao ponto do famosamente profético cartoon de Will Dyson “Peace and Cannon Fodder” mostrar um menino (etiquetado como “classe de 1940”) a chorar sob os olhares do “tigre” Clemenceau, do presidente Wilson, do primeiro-ministro Lloyd George e de Johannes Bell, um dos signatários alemães[ii], não podemos concluir pela inevitabilidade da II Guerra Mundial, muito menos pela sua redução a "segunda parte" do que foi 14-18; são guerras profundamente diferentes.
Para 1939 contribui com certeza o revanchismo de Clemenceau e a “política de execução” de Poincaré, a inflexibilidade francesa face a um Lloyd George que tenta suavizar Versalhes e reequilibrar o continente, mas também o regresso ao isolacionismo pelos Estados Unidos, uma Europa de fronteiras indecisas e contestadas, a inflação vertiginosa de 1923, a humilhação da ocupação do Ruhr[iii], a “paragem cardíaca” do capitalismo que é a derrocada de Wall Street em 1929[iv], a inversão de alianças por Mussolini[v], as tergiversações de Chamberlain e Daladier[vi] face a uma Alemanha que já nem tenta fingir jogar pelas regras; mas significará isto a fatalidade da II Guerra Mundial? A resposta, ainda de Rémond, é um inequívoco sim, e um sim porque estamos a lidar com o fascismo, e a guerra para o fascismo não é uma possibilidade, é uma necessidade: uma necessidade doutrinal, passional, sentimental[vii].
Importa agora a, famosamente árdua, tarefa de definir o fenómeno do fascismo de entre guerras, tarefa árdua não só pelas plasticidade e adaptabilidades locais do mesmo, mas antes de mais por uma interna fuzziness ideológica e conceptual. Como diria Eco, o fascismo é um alveário de contradições[viii]. Sujeito difícil e por isso especialmente necessitado de rigorosa contextualização histórica que lhe dê inteligibilidade[ix], para não escorregarmos, como também Eco, para o vermos sem essência, uma retórica sem filosofia[x]. O fascismo é sim uma intuição, um protesto do instinto[xi], mas não é só isso.
O pipocar de movimentos que começam a revelar características fascizantes para além do conservadorismo clássico, e aqui sigo Rosas[xii], é um fenómeno específico do entre guerras que varre a Europa do sul, do leste e báltica entre 1919 e 1944. Uma Europa em paz precária mas ferida pela Grande Guerra, a cambalear uma recuperação económica amparada em democracias liberais mas patrícias, inevitavelmente associadas ao capitalismo liberal, e vistas como oligárquicas e anquilosadas pelas massas que, pela primeira vez, esperam ter voz no processo político[xiii]. O fascismo é anterior à crise, mas é a crise que lhe vai fornecer as massas[xiv] que encherão os filmes da Riefenstahl.
Agora estes movimentos que surgem e às vezes tomam o poder em sítios tão diferentes como a Itália, a Estónia, a Alemanha ou Portugal, não têm, ao invés dos comunistas desses mesmo países, uma ideologia única e unificadora; pelo contrário, o chauvinismo nacionalista que é sempre peça central em qualquer fascismo quase que obriga a uma plasticidade local, o que não impede que em virtude duma ininterrupta série de decrescentes similaridades, numa espécie de transitoriedade ilusória[xv], se crie um ar de família[xvi] entre Mussolini, Päts, Hitler e Salazar. Ao mesmo tempo que as flagrantes diferenças entre os regimes provam a inutilidade de uma abordagem taxonómica de descritivismo atomizado, ou arriscamos cair no paradoxo de uma teoria destruir o objecto, descobrindo afinal que nunca houve fascismo nenhum em lugar algum[xvii].
O fascismo, sendo muito mais práxis que teoria, tem, para ser compreendido, de ser decantado em fascismo-movimento e fascismo-regime como faz Rosas[xviii]. O fascismo-movimento é o partido de massas plebeias, radicais, sempre desordeiras e às vezes terroristas, que dará voz ao nacionalismo ferido, anti-racionalismo, anti-parlamentarismo, anti-liberalismo e anti-intelectualismo[xix], à frustração de uma classe média esmagada pela crise, apavorada pela possibilidade do comunismo[xx] e sem agência nos velhos partidos liberais[xxi]. Mesmo o salazarismo, esse fascismo catedrático e sem movimento[xxii], saberá dar enquadramento e utilidade a este elemento, subordinando-o ao Estado e às Forças Armadas[xxiii].
Já o fascismo-regime implicará sempre, necessariamente, uma noite das facas longas mercê o processo de fusão-conflito-compromisso com a velha oligarquia, logo que transpostos os portões do poder[xxiv]; as massas base de apoio vêem-se traídas em nome da ordem e do progresso: o ateu e republicano Mussolini assina a Concordata e dobra o joelho a Vítor Emanuel III, Hitler afoga as SA em sangue e todos alinham o Estado com os interesses capitalistas da velha oligarquia conservadora que os continua a olhar com desprezo sobranceiro (Hindenburg morrerá a falar de Hitler como o “cabo da Boémia”[xxv]). O fascismo pode não ser a expressão final e fatal do capitalismo, mas é um seu produto e expressão, a resposta das classes dominantes a uma crise específica que, com os seus efeitos disruptivos e subversores[xxvi], arriscava derrocar todo o sistema num bolchevismo espatarquista ainda mais assustador que a Montanha de 1794.
O fascismo pode partilhar com o velho ultramontanismo o culto da tradição[xxvii] (sempre mais ou menos inventada) e a recusa do iluminismo, da modernidade, da Razão de 1789, mas o fascismo é coisa nova e do seu tempo, o poder ascende da nação e não desce de Deus, o führerprinzip funciona porque o Chefe encarna a vontade nacional e aqui estamos muito longe da simples contra-revolução[xxviii]. Não há uma linhagem elevada pelo sangue, os Chefes não se inventam genealogias que remetam a Eneias e aos deuses, gabam-se antes das origens “normais”, O Chefe é providencial e extraordinário, mas fundamentalmente um de nós.
Outra característica moderna do fascismo é o seu totalitarismo. Por partilhado com o comunismo leninista e depois stalinista, Brzezinski e Arendt podem ter querido contruí-los como excepção, anomalia a um normal correr da História[xxix], mas a verdade é que a exigência duma doutrina que abranja todas as formas de actividade e até a própria concepção da vida, uma doutrina moral, política, económica e social[xxx], é algo que vemos antevisto na Virtude tal como descrita por Robespierre: algo omniabrangente e aplicada pelo Terror “virtude sem a qual o terror é funesto, terror sem o qual a virtude é impotente”[xxxi]. E sobra falar da ferramenta que os fascismos-movimentos usaram para seduzir as oligarquias pela sua eficácia[xxxii]: a violência irrestrita, a violência irrestrita e o culto da violência, a sua verdadeira inovação política[xxxiii].
Para o fascista a vida é guerra e estado de sítio, o desacordo deserção, o pacifismo conluio com um inimigo ao mesmo tempo desprezível de fraco e absurdo na força com que nos cerca, o racismo natural, óbvio e necessário[xxxiv]. Há aqui uma produção social de invisibilidade moral[xxxv] que atesta o regresso da lógica colonial à Europa que a produziu e explica a possibilidade do untermensch nas ruas de Berlim ou Paris, a possibilidade de Auschwitz[xxxvi]. O confronto dum Unamuno sumo-sacerdote do templo do intelecto e um Millán-Astray do “¡Viva la muerte!” em Salamanca pode ser mais mito que realidade histórica[xxxvii], mas qualquer antropólogo nos dirá que um mito é uma mentira que perdura porque conta uma verdade: o culto da violência no fascismo é um culto da morte, uma todestrieb, uma pulsão para a morte[xxxviii] que fez da II Guerra Mundial uma necessidade, uma inevitabilidade, fez dela História.
Bibliografia
DELGADO CRUZ, Severiano – Arqueología de un Mito – el acto del 12 de octubre de 1936 em el Paraninfo de la Universidad de Salamanca. in Gredos – repositorio documental Universidad de Salamanca [em linha] de Maio de 2018, URL: https://gredos.usal.es/bitstream/handle/10366/137592/Arqueolog%c3%ada%20de%20un%20mito.pdf?sequence=1&isAllowed=y
ECO, Umberto – O Fascismo Eterno. in Cinco Escritos Morais. Rio de Janeiro: Editora Record, 1998 [1995], pp. 15 - 26.
FREUD, Sigmund – Além do Princípio do Prazer. Porto Alegre: L&PM Editores, 2016 [1920].
RÉMOND, René – Introdução à História do Nosso Tempo – do Antigo Regime aos Nossos Dias. Lisboa: Gradiva, 1994 [1974].
ROBESPIERRE, Maximilien de – Sobre os princípios de moral política que devem guiar a Convenção Nacional na administração interna da República. in Discursos e Relatórios na Convenção. Rio de Janeiro: Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro / Contraponto, 1999 [1794], pp. 141 - 162.
ROSAS, Fernando – Salazar e os Fascismos – Ensaio breve de História Comparada. Lisboa: Tinta-da-China, 2019.
[i] RÉMOND, R. – Introdução à História do Nosso Tempo, p. 358.
[ii] originalmente publicado no “The Butte Daily Bulletin” de 24 de Junho de 1919, URL: https://chroniclingamerica.loc.gov/lccn/sn83045085/1919-06-24/ed-1/seq-1/
[iii] RÉMOND, R. cit. i, pp. 308 – 317.
[iv] RÉMOND, R. cit. i, pp. 327 – 328.
[v] RÉMOND, R. cit. i, p. 361.
[vi] RÉMOND, R. cit. i, p. 366.
[vii] RÉMOND, R. cit. i, pp. 356 – 357.
[viii] ECO, U. – O Fascismo Eterno, p. 19.
[ix] ROSAS, F. – Salazar e os Fascismos, p. 31.
[x] ECO, U. cit. viii, pp. 18 – 19.
[xi] RÉMOND, R. cit. i, p. 347.
[xii][xii] Quadros II e III in ROSAS, F. cit. ix, p. 49, p. 51.
[xiii] RÉMOND, R. cit. i, pp. 318 – 326.
[xiv] RÉMOND, R. cit. i, p. 329.
[xv] ECO, U. cit. viii, p. 21.
[xvi] RÉMOND, R. cit. i, p. 345.
[xvii] ROSAS, F. cit. ix, pp. 36 – 37.
[xviii] ROSAS, F. cit. ix, p. 71.
[xix] RÉMOND, R. cit. i, pp. 347 – 350.
[xx] RÉMOND, R. cit. i, p. 356.
[xxi] RÉMOND, R. cit. i, p. 319.
[xxii] Francisco Rolão Preto e Manuel de Lucena cit. in ROSAS, F. cit. ix, p. 54.
[xxiii] ROSAS, F. cit. ix, p. 69.
[xxiv] ROSAS, F. cit. ix, pp. 61 – 62.
[xxv] RÉMOND, R. cit. i, pp. 352 – 353.
[xxvi] ROSAS, F. cit. ix, p. 38.
[xxvii] ECO, U. cit. viii, pp. 21 – 22.
[xxviii] RÉMOND, R. cit. i, pp. 350 – 351.
[xxix] ROSAS, F. cit. ix, p. 74.
[xxx] Artur Águedo de Oliveira a descrever o salazarismo cit. in ROSAS, F. cit. ix, p. 73.
[xxxi] ROBESPIERRE, M. de – Sobre os princípios de moral política que devem guiar a Convenção Nacional na administração interna da República, p. 149.
[xxxii] ROSAS, F. cit. ix, p. 60.
[xxxiii] ROSAS, F. cit. ix, p. 56.
[xxxiv] ECO, U. cit. viii, pp. 23 – 24; RÉMOND, R. cit. i, p. 349.
[xxxv] Zygmunt Bauman cit. in x ROSAS, F. cit. ix, p. 78.
[xxxvi] ROSAS, F. cit. ix, p. 79.
[xxxvii] DELGADO CRUZ, S. – Arqueología de um Mito – el acto del 12 de octubre de 1936 em el Paraninfo de la Universidad de Salamanca.
[xxxviii] FREUD, S. – Além do Princípio do Prazer, p. 65.
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