Culturas e Mitologias na Antiguidade 1 – O Mito do Dilúvio como “fim do mundo”.
Tentar-se-á, neste trabalho identificar os temas centrais e perenes do recorrente mito diluviano, paradigmático no Próximo Oriente e influente nos dogmas hebreus e cristãos[i], partindo do trabalho de Irmã Isabel Sampaio Wilken sobre a “Epopeia de Gilgamesh”, em comparação com o relato sobre Noé no Génesis.
Porventura mais importante que determinar a factualidade do dilúvio bíblico[ii], por mais telegramas entusiasmados e metros de limo desenterrados por Wooley[iii], é tentar compreender o porquê desta história se tornar um mito, aqui entendido como “história exemplar” que, passada in illo tempore, se torna modelo de acção[iv], e que por mais degradada que seja participa de um arquétipo continuamente criador[v]. Tendo sempre em conta, por um lado, como o objectivo dum texto religioso é uma leitura moral e não histórica ou sociológica[vi] e, por outro, como não há leitura não condicionada pelo contexto histórico-cultural do leitor[vii].
Sendo o tema primeiro o do fim do mundo, é imediatamente aí que a aventura de Utnapishtim diverge do nosso Noé bíblico. Se no Génesis o tempo narrativo da acção é o presente e a perspectiva a exterminação absoluta[viii], no poema sumério o episódio é apresentado à partida como acontecimento passado a que a Humanidade obviamente sobreviveu, o próprio Utnapishtim, antepassado do herói Gilgamesh[ix], preservador de toda a sorte de semente de vida[x]: ouro, semente, família, gado e artes[xi].
Mas duma maneira ou doutra a ameaça é a mesma: a re-imersão num mar primordial[xii], infinito e indistinto, umas águas que já o eram antes do fiat lux criador[xiii], o regresso a um caos aquático e amorfo, o regresso a uma forma larvar de existência[xiv]; numa tempestade em que irmão não conhece irmão e os próprios deuses rosnam de medo, agachados como cães, o lindo país de antes transformado em lama[xv]. Uma lama que é ingrediente essencial da própria Humanidade[xvi], mas representa ao mesmo tempo a regressão dum cosmos que é um mundo organizado mas antecedido, prosseguido e cercado pelo caos[xvii], nesse mesmo caos; deserto informe de águas[xviii], das águas prévias à existência[xix].
Em contrapartida, o relato sumério que descreve um acto arbitrário e irrefletido[xx] carece do carácter moral que os hebreus lhe imprimirão. En-lil, um deus pouco mais do que um humano imortal[xxi], tenta exterminar a humanidade por causa do alarido que lhe dificulta o descanso, contra o horror e resistência de parte do panteão mesopotâmico[xxii]. Mas Jeová justifica-se-nos o genocídio com os nossos pensamentos que tendem sempre e unicamente para o mal[xxiii], explicitando a sobrevivência do nosso suposto antepassado comum Noé, com a sua muito específica capacidade para ser um homem justo e perfeito[xxiv].
De todo o modo as águas em que somos re-imersos, que a tudo precedem, também tudo suportam e possibilitam – fons et origo. Se é verdade que tudo desintegram e a tudo abolem a forma, também é verdade que tudo lavam, purificam e regeneram: a morte por diluição permite a regeneração, a reintegração passageira no indistinto – o regresso ao ventre líquido – é fonte de geração de nova criação, nova hilogenia, formação de matéria e ser a partir das águas indistintas[xxv].
As divergências pontuais não mascaram a essencial paridade do paradigma. Mais ou menos arco-íris símbolo do apaziguar do Deus do Velho Testamento[xxvi], ou as variações nas sequências de aves soltas da arca (pomba / andorinha / corvo para Utnapishtim[xxvii], corvo / pomba / pomba com folha de oliveira para Noé[xxviii]) não despistam a fundamental identidade arquetípica do mito, aqui e na Grécia, Austrália, Índia, Polinésia, Tibete, Cachemira, Lituânia[xxix]. Aquilo que a “história exemplar” do dilúvio exemplifica não é só o morrer dum mundo velho, mas também o nascer dum mundo novo, no caso do do Génesis, um mundo com a potência para ser menos corrupto que o anterior.
Esta re-imersão, diluição e nova génese constitui-se como ritmo cósmico[xxx] e não encontra maior nó simbólico de refundação do que no primeiro sacrifício pós-diluviano, seja no monte Nizir ou no Ararat. Tanto o sacrifício oficiado por Utnapishtim sobre o qual os deuses se precipitam como moscas[xxxi], seja o de Noé de agradável odor para o Senhor é verdadeiro bauopfer, sacrifício primordial de fundação/refundação do mundo[xxxii], sacrifício que sela a aliança renovada entre humanidade e o Alto, no caso do Génesis, com a expressa promessa de não voltarmos a ser castigados desta maneira, de não voltarmos a sermos amaldiçoados como fomos[xxxiii].
Sequência mítica evidentemente associada à passagem de ano, ritualmente actualizada num fim de ano marcado por excessos orgiásticos e perturbação da ordem social (extinção dos fogos e regresso dos mortos), descida ou regressão a um caos simbólico que prepara a cosmogonia que é a alvorada do novo ano[xxxiv]. Passados milhares de anos e muito longe da Mesopotâmia, esta necessidade de actualização ritual, de reencenação paradigmática do mito, continua em nós e assim a ser poder pela sua contínua existência; como aponta Eliade, até a existência mais des-sacralizada conserva ainda traços de uma valorização religiosa do mundo[xxxv], e nós continuamos a comer e a beber de mais e a bater tachos à janela numa noite muito específica, num acto e data, que por mais que o pareçam, têm muito pouco de arbitrários.
Bibliografia
Bíblia Sagrada. Lisboa: Difusora Bíblica (Missionários Capuchinhos), 1988.
ELIADE, Mircea – Tratado de História das Religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2008 [1949].
ELIADE, Mircea – O Sagrado e o Profano – a essência das religiões. Lisboa: Livros do Brasil, s.d. [1957].
ELIADE, Mircea – História das Ideias e Crenças Religiosas I da Idade da Pedra aos Mistérios de Elêusis. Porto: RÉS-Editora, s.d. [1967].
KRAMER, Samuel Noah – A História começa na Suméria. s.l.: Círculo de Leitores, 1971 [1956].
TAVARES, António Augusto – Civilizações Pré-Clássicas. Lisboa: Universidade Aberta, 1995.
WILKEN, Irmã Isabel Sampaio – O Dilúvio no Poema de Gilgamesh. in Revista de História. vol. 34 n. 69. São Paulo: Euripedes Simões de Paula, 1967, pp. 15 – 40.[i] KRAMER, S.M. – A História começa na Suméria, p. 104.
[ii] WILKEN, I.I.S. – O Dilúvio no Poema de Gilgamesh, p. 28.
[iii] Charles Leonard Wooley cit. in WILKEN, I.I.S. cit. ii, pp. 33 – 35.
[iv] ELIADE, M. – Tratado de História das Religiões, p. 350.
[v] ELIADE, M. cit. iv, p. 353.
[vi] TAVARES, A.A. – Civilizações Pré-Clássicas, p. 461.
[vii] ELIADE, M. – O Sagrado e o Profano, p. 30.
[viii] Génesis 7: 23.
[ix] WILKEN, I.I.S. cit. ii, p. 21.
[x] WILKEN, I.I.S. cit. ii, p. 15.
[xi] WILKEN, I.I.S. cit. ii, p. 23.
[xii] KRAMER, S.M. cit. i, p. 106.
[xiii] Génesis 1: 2 – 3.
[xiv] ELIADE, M. cit. vii, p. 55.
[xv] WILKEN, I.I.S. cit. ii, p. 23.
[xvi] KRAMER, S.M. cit. i, p. 133.
[xvii] ELIADE, M. cit. vii, pp. 43 – 45.
[xviii] WILKEN, I.I.S. cit. ii, p. 24.
[xix] ELIADE, M. cit. vii, p. 139.
[xx] WILKEN, I.I.S. cit. ii, p. 32.
[xxi] TAVARES, A.A. cit. vi, p. 320.
[xxii] ELIADE, M. – História das Ideias e Crenças Religiosas I, pp. 62 – 63.
[xxiii] Génesis 6: 5.
[xxiv] Génesis 6: 9.
[xxv] ELIADE, M. cit. vii, pp. 140 – 141.
[xxvi] Génesis 9: 12 – 17.
[xxvii] WILKEN, I.I.S. cit. ii, p. 24.
[xxviii] Génesis 8: 7 – 11.
[xxix] WILKEN, I.I.S. cit. ii, p. 34.
[xxx] ELIADE, M. cit. xxii, p. 63.
[xxxi] WILKEN, I.I.S. cit. ii, p. 24.
[xxxii] ELIADE, M. cit. vii, p. 68.
[xxxiii] Génesis 8: 21.
[xxxiv] ELIADE, M. cit. xxii, p. 73.
[xxxv] ELIADE, M. cit. vii, p. 37.
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ResponderEliminar“deveria ter sido antecedida por uma maior contextualização da Epopeia de Gilgamesh, assim como encontro de Gilgamesh com Utnapishtim"