História de Portugal Moderno (take 2) 1 - D. Sebastião na sua relação com outros poderes.

Tentar-se-á neste trabalho identificar as linhas da acção governativa durante o reinado de D. Sebastião, tendo em atenção o ambiente vivido no reino, especialmente no caminho para a fatal jornada a África.

É um Sebastião de 3 anos que, com a morte do avô D. João III, é aclamado rei depois duns dias de febril actividade palaciana. O monarca falecido sem testamento, deixa uns “apontamentos” nem datados nem assinados, a designar a esposa D. Catarina tutora e curadora do neto, pressupõe-se-lhe a regência, o que levanta dúvidas ao derradeiro irmão varão do falecido, o cardeal D. Henrique[i]. Deste complexo enredo palaciano sai uma regência da avó, com o tio-avô associado[ii], situação que se manterá de 1557 a 1562, quando afastada D. Catarina, sobe à regência o cunhado.

O infindável conflito entre D. Catarina e D. Henrique[iii], que marca o início do reinado sebástico, é mais fruto de rivalidade pessoal do que de dissonância política: se D. Catarina é mais seguidista aos ditames dinásticos do “chefe de família” dos Áustrias Filipe II, D. Henrique, mais cauteloso, não lhes é hostil[iv], e no resto ambas as regências são marcadas por uma estabilidade mais preocupada em conservar do que em expandir[v]. Concordância visível na contínua preocupação com a defesa militar, construindo-se e reparando-se as fortalezas que defendiam as costas do corso (norte-europeu e norte-africano) que infestava as águas portuguesas[vi]; na política imperial de territorialização e contenção (com inquirições e cortes de despesas) iniciada por D. Catarina e plenamente prosseguida por D. Henrique[vii]; na política religiosa marcada, em ambos, por um fortalecimento da Inquisição e pela adopção sem hesitações das determinações conciliares de Trento[viii].

Também na criação do pequeno rei a tensão entre cunhados é negociável: ambos concordam na tutoria do jesuíta Luís Gonçalves da Câmara, figura central para o ambiente de fervor religioso pouco crítico, a atmosfera cultural pesada[ix] da corte dum rei menino que se ensopa em fé e literatura militar[x]. D. Sebastião, o “desejado” antes de ser, essa “jóia preciosa”[xi], cresce altivo e sobranceiro, como que imune à vida[xii], progressivamente cercado por um grupo de jovens favoritos tão empenhados e iludidos como ele[xiii], convencido à partida da “sua experiência” e sentindo uma predestinação que a pouco e pouco se tornará obsessiva[xiv]. Tomando as rédeas pessoalmente em 1568 D. Sebastião, ainda rodeado de ministros herdados do tio-avô, encabeça um afã legislativo que vai ao barroquismo[xv]; ao confessor Luís junta-se o irmão Martim Gonçalves da Câmara e impõem um “império” que prefigura o valimiento[xvi] e que, se começa por seguir a política defensiva dos regentes, finalmente vai mais além com as Ordenanças[xvii].

Estas Ordenanças, esforço institucional sem precedentes, regularão a construção naval, apoiarão a fortificação costeira, normalizarão o armamento e centralizarão o recrutamento pelo enquadramento sistemático dos homens em companhias segundo o modelo dos tercios espanhóis[xviii]. A enorme reforma introduzida pelo domínio das fontes de recrutamento através de circunscrições militares, gera imensas resistências entre a velha nobreza da espada[xix]; a corte fervilha de cartas anónimas[xx] e as ruas de pasquins[xxi] carregados de acusações cruzadas, defesas de mestres discretos e apelos ao rei. O rei, esse, delicia-se a fazer marchar a soldadesca para a frente e para trás no Campo de Sto. Amaro, para alegria dos lisboetas[xxii], enquanto fala em ir combater o infiel para o Índico[xxiii] para o horror combinado de D. Catarina, D. Henrique e dos irmãos Câmara. 

Entretanto a situação internacional adensa-se: depois dos insucessos norte-africanos dentre 1550 e 1570 mas com a honra lavada por Lepanto, Filipe II tenta entender-se com o Grão-Turco[xxiv]. Túnis, Argel e Trípoli fervilham de piratas mas Filipe II chega a negociar secretamente com Abd al-Malik (o Mulei Maluco dos portugueses) durante o agravar da guerra marroquina de sucessão de Abdallah al-Galib[xxv]. Sebastião, pretextando a aliança com al-Mutawakkil (concorrente a al-Malik)[xxvi], opera uma viragem norte-africana, abandona o Oriente a si mesmo[xxvii] e qualquer lógica consistente ou visão de conjunto para a política imperial[xxviii]. Afastado Martim da Câmara[xxix], surdo às objeções de D. Henrique, da agonizante D. Catarina[xxx], da Câmara de Lisboa; Sebastião mergulha numa belicosidade que o tio Filipe descreve como mais obstinação que outra coisa[xxxi].

Empenha-se o reino, sofre-se uma atribulada, árdua e morosa preparação, carregada de adiamentos à medida que Filipe II obstaculiza cada passo[xxxii]; exuma-se a espada de Afonso Henriques[xxxiii] e reúne-se um exército indisciplinado de para cima de 17 mil[xxxiv], pasmante de luxo que parece partir para faustosa festa num projecto em que sendo, de enorme complexidade, nada é devidamente preparado[xxxv] por um rei que equivale cuidado a cobardia[xxxvi]. Mesmo entre participantes há quem escreva ser grande lástima ver ir o rei sem homem que entenda o que vamos fazer... dependemos totalmente de milagre[xxxvii].

Pois, milagre não houve e no paradoxo dum D. Sebastião que com as suas Ordenações encerra o tempo da guerra medieval[xxxviii] e quer, ao mesmo tempo, ser o último dos últimos cavaleiros da Reconquista é difícil não ver um quixotismo melhor expresso no original: Para te falar franco, vi-lhe fazer coisas próprias do maior louco do mundo, e proferir palavras tão acertadas e justas, que desmentem e anulam tais actos[xxxix].

Bibliografia

CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de – Dom Quixote de la Mancha volume II. [trad. Aquilino Ribeiro] s.l.: Público Comunicação Social, 2005 [1605].

CRUZ, Maria Augusta Lima – D. Sebastião. Lisboa: Círculo de Leitores, 2006.

MAGALHÃES, Joaquim Romero (coord.) – Terceiro Volume No Alvorecer da Modernidade (1480 - 1620). Mattoso, José (dir.) – História de Portugal. s.l.: Círculo de Leitores, 1993.

MARQUES, A.H. de Oliveira – História de Portugal – desde os tempos mais antigos até ao governo do Sr. Palma Carlos. Lisboa: Palas Editores, 1974 [1972].

SOUSA, Luís Filipe Guerreiro da Costa e – Revisitar a batalha de Alcácer Quibir. in e-Strategica 1. Cernache / Cáceres: Asociación Ibérica de Historia Militar (siglos IV - XVI), 2017, pp. 111 – 159.

VILA-SANTA, Nuno – A Coroa e o Estado da Índia nos reinados de D. Sebastião e D. Henrique – política ou políticas? in Lusitania Sacra 29. Lisboa: Centro de Estudos de História Religiosas, Jan/Jun 2014, pp. 41 – 68.


[i] CRUZ, M.A.L. – D. Sebastião, pp. 39 – 41.

[ii] MAGALHÃES, J.R. – Terceiro Volume No Alvorecer da Modernidade, p. 542.

[iii] CRUZ, M.A.L. cit. i, p. 188.

[iv] MAGALHÃES, J.R. cit. iI, pp. 543 – 544.

[v] MARQUES, A.H.O. – História de Portugal, p. 420.

[vi] MARQUES, A.H.O. cit. v, p. 421.

[vii] VILA-SANTA, N. – A Coroa e o Estado da Índia..., p. 42 – 46.

[viii] MARQUES, A.H.O. cit. v, p. 420.

[ix] MAGALHÃES, J.R. cit. ii, p. 542.

[x] SOUSA, L.F.G.C. – Revisitar a batalha de Alcácer Quibir, p. 124.

[xi] André de Resende cit. in MAGALHÃES, J.R. cit. ii, p. 540.

[xii] MAGALHÃES, J.R. cit. ii, p. 541.

[xiii] MAGALHÃES, J.R. cit. ii, p. 544; Oliveira Marques, menos generoso, chama-lhes ineptos, loucos e imaturos: MARQUES, A.H.O. cit. v, p. 421.

[xiv] CRUZ, M.A.L. cit. i, p. 260.

[xv] CRUZ, M.A.L. cit. i, p. 177.

[xvi] MAGALHÃES, J.R. cit. ii, p. 544.

[xvii] CRUZ, M.A.L. cit. i, pp. 179 – 180.

[xviii] SOUSA, L.F.G.C. cit. x, pp. 123 – 124.

[xix] CRUZ, M.A.L. cit. i, pp. 180 / 193.

[xx] CRUZ, M.A.L. cit. i, pp. 190 – 191.

[xxi] CRUZ, M.A.L. cit. i, pp. 187 – 188.

[xxii] CRUZ, M.A.L. cit. i, pp. 180 – 181.

[xxiii] VILA-SANTA, N. cit. vii, p. 57.

[xxiv] SOUSA, L.F.G.C. cit. x, p. 116.

[xxv] SOUSA, L.F.G.C. cit. x, p. 128.

[xxvi] SOUSA, L.F.G.C. cit. x, p. 121.

[xxvii] Luís Filipe Thomaz cit. in VILA-SANTA, N. cit. vii, p. 61.

[xxviii] VILA-SANTA, N. cit. vii, pp. 66 – 67.

[xxix] MAGALHÃES, J.R. cit. ii, p. 544.

[xxx] CRUZ, M.A.L. cit. i, p. 263.

[xxxi] MAGALHÃES, J.R. cit. ii, p. 545.

[xxxii] CRUZ, M.A.L. cit. i, pp. 256 – 259.

[xxxiii] CRUZ, M.A.L. cit. i, p. 264.

[xxxiv] MARQUES, A.H.O. cit. v, p. 422.

[xxxv] MAGALHÃES, J.R. cit. ii, pp. 545 – 546.

[xxxvi] MARQUES, A.H.O. cit. v, p. 421.

[xxxvii] Juan de Silva cit. in MAGALHÃES, J.R. cit. ii, p. 546.

[xxxviii] SOUSA, L.F.G.C. cit. x, p. 159.

[xxxix] CERVANTES SAAVEDRA, M. – Dom Quixote de la Mancha vol. II, p. 151.


 

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