Religiões Helenísticas 1 – O espírito religioso no período helenístico.
Procurar-se-á neste trabalho, antes de mais por comparação com o momento anterior, identificar os elementos característicos do espírito religioso do período helenístico (aqui balizado entre Queroneia e o Áccio); procurando estabelecer um nexo entre a mudança das condições sócio-políticas e a da relação com o sagrado por parte dos indivíduos.
Se Filipe II impõe uma hegemonia macedónica aos gregos, e o furacão Alexandre a estende aos limites do mundo conhecido, a verdade é que ao ápice argéada se segue imediatamente o ocaso: os Sucessores eliminam os legítimos herdeiros e mergulham o efémero império em sucessivos conflitos que levarão 50 anos até uma realidade tripartida, mais ou menos estável, entre Antigónidas na Macedónia, Selêucidas na Ásia e Ptolomeus no Egipto[i], uma realidade marcada por choques, disputas e desafios, justaposições e coexistências de tendências contraditórias e paradoxais[ii]. Mesmo fugindo ao exagero dos efeitos do contacto entre ocidente e oriente[iii], a verdade é que assistimos a um momento de fusão e difusão, em que a diferença entre grego e bárbaro se atenua[iv] e que do Atlântico ao Punjab, do Cáucaso à Etiópia, se ensaia um inédito universalismo[v].
Neste novo mundo em que o direito da lança se substitui à tradição[vi], o grego pode ser a língua franca e a educação grega o motor de ascensão social, mas o ideal político é um despotismo que cruza a monarquia macedónica com elementos das antigas tiranias aristocráticas e, eventualmente, uma divinização real tradicionalmente oriental[vii]. Com o crescimento demográfico as cidades incham ao exagero duma Alexandria de meio milhão de habitantes, as antigas polei clássicas vêem-se substituídas por cosmópolis de carácter supra-regional (Antioquia, Pérgamo); sacrificada a antiga autonomia ganha-se uma percepção mais vasta e ampla do mundo[viii], no esbater da polis forma-se a oikoumene[ix]. Se a isto juntarmos uma crise social e uma insegurança perene que esmaga as massas[x] é natural, como aponta Selvatici, a busca de respostas para esta nova realidade.
Potter pode afirmar a dificuldade em encontrar verdadeiras inovações[xi], mas a maioria dos estudiosos pergunta-se antes sobre o grau em que a hibridização orientalizante contribui para o apagamento da religião tradicional[xii] e como esta perde o vínculo com a política stricto sensu[xiii]. Neste mundo de cidadanias esvaziadas que transforma o indivíduo em súbdito[xiv], o que parece mais ou menos consensual é o triunfo do individual face ao colectivo: a devoção deixa de ser um dever cívico e passa a ser meio de salvação pessoal[xv]; algo também notório na evolução do pensamento filosófico, que se “despolitiza”, centrando-se com cínicos, estóicos, epicuristas, cépticos, cirenaicos ou ecléticos exclusivamente na virtude e/ou felicidade individuais[xvi]. Em sentido contrário, um possível cepticismo popular, defendido por Lévêque[xvii] e Sales[xviii], encontra sérias reservas em Potter com um liminar há poucos, se alguns, verdadeiros agnósticos no mundo grego[xix].
Indiscutível novidade helenística é a imensa popularidade de Tique (Fortuna/Sorte), personificação da desordem e do fortuito e cujo culto, independentemente de ser expressão de cepticismo disfarçado[xx], é claramente resposta a um ambiente incerto de mudanças demasiado rápidas[xxi]. Novidade também é o sincretismo que, com mais ou menos engenharia das casas soberanas (Serápis como um composto de Osíris, Ápis, Zeus, Asclépio e Dionísio por Ptolomeu I Sóter sendo um caso particularmente extremo[xxii]), reclama divindades “conquistadas”: seja por anexação pela mitologia grega ou por hibridização via epiclese[xxiii]. Na volta da ida, novidade é também, o crescente e perene sucesso de divindades importadas como a frígia Cíbele ou a egípcia Ísis entre gregos[xxiv] (e eventualmente romanos) não obstante o violento exotismo do culto duma ou a capacidade de absorção doutra[xxv]. Novidade para além destas são também as associações divino-dinásticas: Héracles para os Antigónidas, Apolo para os Selêucidas, Dionísio para os Ptolomeus[xxvi] (César haveria de lhes aprender a lição, sublinhando a própria descendência de Vénus[xxvii]) e, com mais ou menos filiação com a clássica imortalização dos semi-deuses arcaicos, a divinização dos próprios soberanos[xxviii].
Mas provavelmente mais do que estas documentadas divergências em relação à serena religiosidade cívica das polei tal como imaginada por Droysen, o salto dado é menos de forma do que do tom: os hipotéticos sete atenienses de Potter[xxix] poderiam não se admirar com as “estruturas religiosas” que encontrariam após 200 anos de sono mas, vindos dum tempo em que os excessos dionisíacos eram considerados nocivos para a polis[xxx], como reagiriam às autocastrações duns sacerdotes da Magna Mãe que[xxxi], já não meros representantes da comunidade perante a divindade[xxxii], em fervores se faziam veículos para contacto directo com o sagrado[xxxiii]; como reagiriam aos mistérios herméticos, extáticos e orgiásticos que construíam confrarias que igualavam gregos e bárbaros, homens e mulheres, adultos e crianças, livres e escravos; como reagiriam a uma sociedade prenhe de misticismo, magia utilitária popular coroada por Hécate, astrologia, divinização de soberanos vivos e cultos exóticos a divindades a uma epiclese de ainda terem cabeças de animais nas imagens dos templos?[xxxiv] Independentemente da taxonomia a posteriori entre comportamentos religiosos passivos e activos[xxxv], o que nos surge neste período ou é novidade, ou Droysen não foi o último a idealizar a serenidade dum Péricles.
Bibliografia
FERREIRA, José Ribeiro – Civilizações Clássicas I Grécia. Lisboa: Universidade Aberta, 1996.
LÉVÊQUE, Pierre – O Mundo Helenístico. Lisboa, Edições 70, 1987 [1969].
MARQUES, Juliana Bastos – As cidades helenísticas: fim ou transformação da polis? in O Mundo Helenístico vol. 2. Rio de Janeiro: Fundação CECIERJ, 2013, pp. 33 – 59.
POTTER, David – Hellenistic Religion. in Erskine, A. (dir.) A Companion to the Hellenistic World. Malden / Oxford / Victoria: Blackwell, 2003, pp. 407 – 430.
SALES, José das Candeias – O Estudo da Civilização Helenística. Conceitos, temas e tendências. in Carvalho, Dulce; Maior, Dionísio Vila; Teixeira, Rui de Azevedo (org.) Des(a)fiando Discursos – homenagem à Professora Maria Emília Ricardo Marques. Lisboa: Universidade Aberta, 2005, pp. 571 – 578.
SELVATICI, Monica – Os novos mundos das religiões e das filosofias helenísticas. in O Mundo Helenístico vol. 2. Rio de Janeiro: Fundação CECIERJ, 2013, pp. 87 – 110.
SOUZA, Osmar Martins de; MELO, José Joaquim Pereira – O Helenismo - consolidação de uma nova ordem social e de uma nova mentalidade. in VIII Jornada de Estudos Antigos e Medievais. Maringá: Universidade Estadual de Maringá, 2009.
SUETÓNIO TRANQUILO, Caio – Os Doze Césares. Lisboa, Assírio & Alvim, 2007.[i] FERREIRA, J.R. – Civilizações Clássicas I Grécia, pp. 209 – 212.
[ii] SALES, J.C. – O Estudo da Civilização Helenística, p. 575.
[iii] SALES, J.C. cit. ii, p. 571.
[iv] SOUZA, O.M.; MELO, J.J.P. – O Helenismo, p. 1.
[v] FERREIRA, J.R. cit. i, p. 229.
[vi] SELVATICI, M. – Os novos mundos das religiões e das filosofias helenísticas, p. 89.
[vii] SALES, J.C. cit. ii, pp. 572 – 573.
[viii] MARQUES, J.B. – As cidades helenísticas, pp. 38 / 43 / 51 – 52.
[ix] FERREIRA, J.R. cit. i, p. 230.
[x] LÉVÊQUE, P. – O Mundo Helenístico, p. 145.
[xi] POTTER, D. – Hellenistic Religion, p. 408.
[xii] LÉVÊQUE, P. cit. x, pp. 143 – 144; SOUZA, O.M.; MELO, J.J.P. cit. iv, p. 6.
[xiii] FERREIRA, J.R. cit. i, p. 256; SOUZA, O.M.; MELO, J.J.P. cit. iv, p. 7.
[xiv] MELO, J.J.P. cit. iv, p. 6.
[xv] LÉVÊQUE, P. cit. x, p. 144.
[xvi] SELVATICI, M. cit. vi, pp. 98 – 102; SOUZA, O.M.; MELO, J.J.P. cit. iv, p. 8.
[xvii] LÉVÊQUE, P. cit. x, p. 144.
[xviii] SALES, J.C. cit. ii, p. 572.
[xix] POTTER, D. cit. xi, pp. 412.
[xx] LÉVÊQUE, P. cit. x, p. 144.
[xxi] SELVATICI, M. cit. vi, pp. 89 – 90.
[xxii] LÉVÊQUE, P. cit. x, pp. 153 – 154.
[xxiii] POTTER, D. cit. xi, p. 424.
[xxiv] LÉVÊQUE, P. cit. x, p. 148.
[xxv] SELVATICI, M. cit. vi, pp. 91 – 94.
[xxvi] SELVATICI, M. cit. vi, p. 90.
[xxvii] SUETÓNIO TRANQUILO, C. – Os Doze Césares, p. 15
[xxviii] POTTER, D. cit. xi, pp. 416 – 419.
[xxix] POTTER, D. cit. xi, p. 429.
[xxx] FERREIRA, J.R. cit. i, p. 268.
[xxxi] SELVATICI, M. cit. vi, p. 91.
[xxxii] POTTER, D. cit. xi, pp. 410 – 412.
[xxxiii] LÉVÊQUE, P. cit. x, p. 145.
[xxxiv] LÉVÊQUE, P. cit. x, pp. 155 – 160.
[xxxv] POTTER, D. cit. xi, p. 407.
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