Temas de Cultura e Religião Idade Média 1 - A heresia e o seu ambiente sócio-religioso.

Tentar-se-á neste trabalho, a partir do catarismo occitânico, compreender as características principais das heterodoxias cristãs medievais, integrando-as no padrão cultural coevo, sublinhando-lhes para além da doutrina a praxis social, com um olho na resposta institucional dos poderes da altura, e outro na possibilidade dum continuum que as relacione com o posterior momento da Reforma.

Como bem aponta Duby, ideologicamente o ideal social medieval é decantável numa palavra: ordo, uma ordem que sacralizava a autoridade dos poderosos[i] e justificava a imutabilidade da submissão dos pobres que penavam sobre a mesma terra que os avós tinham fecundado com a sua fadiga[ii]. Provavelmente central para compreendermos a capacidade de manobra e de reacção[iii] da Igreja e dos poderes seculares à heterodoxia religiosa, mais do que discutirmos se esta foi endémica[iv], génese de um vazio[v] ou ressurgimento de núcleos mal cercados[vi], é pensarmo-la antes de mais como um desafio a uma autoridade que mais do que legítima, é sagrada: o que define a heterodoxia é, crucialmente, a desobediência[vii]. Claramente na intersecção do reformismo gregoriano[viii] e dum renovado zelo religioso[ix], um enorme apetite pelo divino[x], este fim do séc. XI inícios do XII, é palco dum grande debate que ao ordo contrapõe o meritum[xi].

Independentemente de vermos nos sucessivos eclodir heterodoxos “um movimento” ou não[xii], há um “ar de família” entre patarinos, valdenses, bogomilos, cátaros, e nalguma medida até humiliati, beguinas e franciscanos espirituais, que ultrapassa a mera contemporaneidade. Um ar de família decorrente dum espiritualismo integral[xiii] que da antiga renúncia ao mundo avança para um ingresso evangélico no mundo, uma vita apostolica[xiv], ainda por cima estendida à massa dos fiéis, expectável da massa dos fiéis[xv]. Uma vita apostolica que se reclama como de “verdadeiros cristãos” mas versão heróica[xvi], uma espiritualidade exacerbada supostamente paleocristã, mais ou menos anti-eclesiástica, quase sempre contra o dízimo[xvii] e sempre com um elogio à pobreza[xviii].

Independentemente também, das nossas tentativas taxonómicas a posteriori, até porque cada uma destas facções evolui doutrinariamente ao longo do período, há claramente dois níveis de dissensão em relação à ortodoxia pontifical: Um nível meramente eclesiológico (o meritum e a pobreza da Igreja) passível de ser negociável e recuperável pela autoridade (mendicantes, humiliati e parte dos valdenses)[xix] com concessões unitaristas pela Santa Sé[xx]; depois duma Verona de 1184 com excomunhões de largo espectro[xxi], a Igreja aprende as insuficiências dos excessos de rigor[xxii] e procurará activamente distinguir desvio do dogma do dogma de desvio, procurando reintegrar os primeiros e eliminar, irreversivelmente, os outros[xxiii].

Mas o catarismo não é desvio, é um dogma diferente[xxiv], a desobediência é total e expressa e é quase modesto falar em heterodoxia, caímos aqui fundamentalmente na detestável heresia que sapa a Autoridade por dentro e por fora[xxv]. Inobstante o dualismo lhes ser absoluto ou mitigado[xxvi], com mais ou menos influências de Zoroastro[xxvii], de Mani, dos cultos órficos, de Orígenes ou Plotino[xxviii], o ponto crucial era muito mais a exclusiva capacidade dos “perfeitos” em garantir a Salvação[xxix]. Por mais “compromissos quase inevitáveis” no terreno, a doutrina cátara representa uma proposta radical de absoluto esvaziamento eclesiástico.

O dualismo (seja um ou outro) rebaixa imediatamente a materialidade, obrigando a um Cristo jamais incarnado, esvaziando por arrasto a Paixão, a Eucaristia (o “bolito” de Bélibaste[xxx]), a ressurreição dos corpos[xxxi] (fazendo os crentes hesitar entre a metempsicose e a simples não-sobrevivência da alma[xxxii]) e reduzindo os sacramentos a farsas ignoráveis (confissão), ritos de passagem (baptismo, comunhão e casamento) ou simples esquecimentos (crisma, extrema-unção, missas e preces post-mortem)[xxxiii].

Este dualismo teológico reflecte-se na congregação, criando uma comunidade em dois pisos[xxxiv], num modelo aparentemente herdado dos valdenses[xxxv]: uma minoria de “perfeitos” baptizados pelo livro, abstencionistas de mulheres e de carne (e queijo e ovos), pobres voluntários de vita apostolica e únicos capazes do consolamentum[xxxvi] essa absolvição final sem necessidade de confissão; e uma vasta maioria de crentes comuns que, num contexto obsessivamente salvacionista[xxxvii], ao mesmo tempo se vêem libertos da dízima, dos ditames dos padres calaceiros[xxxviii] e das chamas do fogo do Inferno, e que se podem permitir uma moral lassa de sexo desregulado e preguiça[xxxix] enquanto tiverem um santo à mão[xl] que os absolva e acompanhe na agonia final da endura, essa definitiva e radical rejeição da materialidade.

Na prática, no terreno, era a demarcação entre cátaros e católicos clara e firme? Não é preciso um antropólogo para nos dizer da necessária hibridez da vida real: o futuro Bento XII testemunha e Le Roy Ladurie expressa-o falando da fronteira flácida que não impede que se pesque em ambas as margens do rio. Contrariando o senso comum duma crença intelectualizada das elites versus uma religiosidade popular mais superstição utilitária que qualquer outra coisa, o que encontramos em Montaillou é a possibilidade de um pietismo definido[xli] (tanto católico como herético) em cima versus a necessidade de sobreviver em baixo por entre diferentes e conflituantes poderes, diferentes construções teológicas já de si a trabalhar por entre um folclore local com a sua própria expressão[xlii]; um ambiente pouco legível que não justificando, pode começar a explicar o suposto “novit enim Dominus qui sunt eius” de Arnaud Almaric.

Assim, num ambiente que Le Roy Ladurie descreve como de anti-clericalismo de longa duração por conta da detestada dízima, tantas vezes pretexto de excomunhão[xliii], e com uma clara propensão herética[xliv], espalha-se uma doutrina que des-sacralizando o quotidiano material[xlv], dá resposta ao salvacionismo dos fiéis, não lhes castigando o hibridismo com a ortodoxia (comunhões simuladas e confissões brancas), por uma via que exclui completamente a função, que esvazia completamente o poder simbólico da Igreja institucional. A resposta institucional revelou-se, inevitavelmente, decisiva.

Do arsenal identificado por Mitre Fernández[xlvi] que constitui a resposta da Igreja a estas heterodoxias: intervenção das ordens mendicantes tentando recanalizar o espiritualismo popular de volta ao redil ortodoxo, Inquisição que vigia e pune e, finalmente, o redirigir da lógica da Cruzada dos infiéis externos para os heréticos internos; a Occitânia conhecerá as versões mais duras e extremas. A morte de Pierre de Castelnau, enviado para “evangelizar na paz e instruir na fé”, e assassinado por lanças hereges[xlvii] é o casus belli que faz soltar os barões do Norte, abençoados pelo papa, e obriga as nossas habitualmente circunspectas fontes, a falar num fanatismo que afoga em sangue qualquer dissensão, hesitação ou dúvida[xlviii]. À necessidade de ortodoxia de Inocêncio III junta-se a de hegemonia de Filipe Augusto, a guerra brutal prolongar-se-á por mais de 30 anos, no fim a heresia extirpada, fora uns redutos esquecidos no alto dos montes, como o que o bispo Jacques Fournier encontrará em Montaillou mais de meio século depois, mas pouco mais que “um cadáver que ainda mexe”[xlix].

Sobra a questão da possível relação desta heterodoxia do séc. XII com a futura Reforma protestante; questão natural quando vemos, a posteriori, os antigos bastiões cátaros – Gasconha, Bearne, Navarra, Languedoque – transformarem-se eventualmente em bastiões huguenotes. Le Roy Ladurie é peremptório: Lutero é um Bélibaste que triunfa; insiste numa regional propensão herética, deixa cair o dualismo e sublinha a justificação pela fé dispensadora de sacramentos, relacionando o ódio à dízima de uns, com o desprezo pelas indulgências de outros[l]. Chaunu, tipicamente, é bastante mais cauteloso, falando numa “falsa continuidade” e reservando o espaço da pré-Reforma para figuras como John Wycliffe ou Jan Huss[li]. Dum modo ou doutro, o catarismo, mesmo com todas as dificuldades que temos para o conhecer, representa sem dúvida um ponto nodal não só da vivacidade teológica medieval como da imposição institucional da Igreja romana.      

Bibliografia

Martyrologium Romanum. Civitate Vaticana: Typis Vaticanis, 2004.

BOLTON, Brenda – A Reforma na Idade Média. Lisboa: Edições 70, 1986 [1983].

CHAUNU, Pierre – O Tempo das Reformas (1250 - 1550) História Religiosa e Sistema de Civilização I A Crise da Cristandade. Lisboa: Edições 70, 1993 [1975].

DUBY, Georges – O Tempo das Catedrais – a Arte e a Sociedade 980 - 1420. Lisboa: Estampa, 1993 [1966 - 67].

LADURIE, Emmanuel Le Roy – Montaillou – Cátaros e Católicos numa aldeia occitana 1294 - 1324. Lisboa: Edições 70, s.d. [1975].

LE GOFF, Jacques (dir.) – O Homem Medieval. Lisboa: Presença, 1989 [1987].

MITRE FERNÁNDEZ, Emilio – Sociedad y Herejia en el Occidente Medieval. Madrid: Ed. Zero, 1972.

VAUCHEZ, André – A Espiritualidade na Idade Média séculos VIII a XIII. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995 [1975].


[i] DUBY, G. – O Tempo das Catedrais, p. 54.

[ii] DUBY, G. cit. i, pp. 41 – 42.

[iii] MITRE FERNÁNDEZ, E. – Sociedade y Herejia em el Occidente Medieval, p. 79.

[iv] LE GOFF, J. – O Homem Medieval, p. 18.

[v] CHAUNU, P. – O Tempo das Reformas, p. 55.

[vi] VAUCHEZ, A. – A Espiritualidade na Idade Média, p. 101.

[vii] BOLTON, B. – A Reforma na Idade Média, p. 32.

[viii] MITRE FERNÁNDEZ, E. cit. iii, p. 67.

[ix] BOLTON, B. cit. vii, p. 19.

[x] Lucien Febvre cit. in LADURIE, E.L.R. – Montaillou, p. 465

[xi] BOLTON, B. cit. vii, p. 24.

[xii] BOLTON, B. cit. vii, p. 63.

[xiii] VAUCHEZ, A. cit. vi, p. 126.

[xiv] BOLTON, B. cit. vii, pp. 19 – 22.

[xv] MITRE FERNÁNDEZ, E. cit. iii, p. 66.

[xvi] LADURIE, E.L.R. cit. x, pp. 11 / 467.

[xvii] VAUCHEZ, A. cit. vi, pp. 103 – 104.

[xviii] BOLTON, B. cit. vii, p. 23.

[xix] CHAUNU, P. cit. v, p. 207.

[xx] BOLTON, B. cit. vii, p. 34.

[xxi] MITRE FERNÁNDEZ, E. cit. iii, p. 70.

[xxii] CHAUNU, P. cit. v, p. 210.

[xxiii] VAUCHEZ, A. cit. vi, p. 102.

[xxiv] DUBY, G. cit. i, p. 134.

[xxv] LE GOFF, J. cit. iv, p. 18.

[xxvi] LADURIE, E.L.R. cit. x, p. 466.

[xxvii] MITRE FERNÁNDEZ, E. cit. iii, p. 73.

[xxviii] CHAUNU, P. cit. v, p. 208.

[xxix] LADURIE, E.L.R. cit. x, p. 409.

[xxx] Guilhem Bélibaste cit. in LADURIE, E.L.R. cit. x, p. 419.

[xxxi] LADURIE, E.L.R. cit. x, p. 459.

[xxxii] LADURIE, E.L.R. cit. x, p. 461.

[xxxiii] LADURIE, E.L.R. cit. x, pp. 439 – 441.

[xxxiv] Jean Chelini cit. in LADURIE, E.L.R. cit. x, p. 473.

[xxxv] Bernard Gui cit. in MITRE FERNÁNDEZ, E. cit. iii, p. 70.

[xxxvi] LADURIE, E.L.R. cit. x, pp. 11 / 433.

[xxxvii] LADURIE, E.L.R. cit. x, pp. 409 – 410.

[xxxviii] LADURIE, E.L.R. cit. x, p. 497.

[xxxix] LADURIE, E.L.R. cit. x, p. 481.

[xl] LADURIE, E.L.R. cit. x, p. 469.

[xli] LADURIE, E.L.R. cit. x, p. 421.

[xlii] LADURIE, E.L.R. cit. x, p. 462.

[xliii] LADURIE, E.L.R. cit. x, p. 489.

[xliv] LADURIE, E.L.R. cit. x, p. 13.

[xlv] LADURIE, E.L.R. cit. x, p. 510.

[xlvi] MITRE FERNÁNDEZ, E. cit. iii, p. 78.

[xlvii] Martyrologium Romanum, p. 100.

[xlviii] MITRE FERNÁNDEZ, E. cit. iii, p. 80; DUBY, G. cit. i, p. 166.

[xlix] LADURIE, E.L.R. cit. x, p. 12.

[l] LADURIE, E.L.R. cit. x, pp. 489 – 490.

[li] CHAUNU, P. cit. v, pp. 214 – 215.


 

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