Culturas e Mitologias na Antiguidade 2 – Teogonias e cosmogonias do antigo egipto.
Procurar-se-á neste trabalho, identificar os modelos e temas principais das várias cosmogonias desenvolvidas pelos antigos egípcios, tomando por fio condutor as quatro escolas de Iunu / Heliópolis, Men-nefer / Mênfis, Khemenu / Hermópolis e Uaser / Tebas (Sales, 2018: 20); a partir de narrativas sagradas largamente episódicas (Eliade, 1967: 94) que o ambiente de liberdade teológica lhes permitiu (Tavares, 1995: 114).
Coincidente em todas estas cosmogonias concorrentes, como veremos, é a noção dum tempo antes do tempo, dum incriado pré-cosmos de águas indistintas donde emerge uma “primeira vez” num “primeiro lugar”. Para os sacerdotes de Iunu esse primeiro lugar é a colina de areia donde emerge um Atum auto-criado e já completo, que por cedência da própria substância (cuspo ou sémen) produz o primeiro casal divino: Chu e Tefnut, os ares seco e húmido. Primeiro casal que engendra o segundo, Geb e Nut, a terra masculina e o céu feminino, que por sua vez geram já sexualmente Osíris, Ísis, Set e Néftis, completando assim a pesedjet original (Eliade, 1967: 86-87; Sales, 2007: 170-171).
Se em Iunu a cosmogonia é intensamente física, em Men-nefer é tão espiritualizada que se aproxima do logos. Um Ptah também auto-criado mas que cria com o coração e a língua, ou seja, o pensamento deliberado e um discurso executivo pela simples enunciação do nome das coisas. Um Ptah “senhor de tudo”, causa prima e prevalente sobre todos os deuses, ele próprio personificação da “terra emergida”, da cósmica colina primitiva que se ergue e se separa do caos (Sales, 2018: 16-19).
Um Ptah cujos sacerdotes tentarão associar como inseminador do ovo primordial da “Grasnadora” da cosmogonia de Khemenu. Um ovo cósmico donde eclode uma ogdóade de quatro casais, eles batraquiocéfalos e elas serpenticéfalas, que à vez representam o líquido inerte, o espaço infinito, o obscuro e o escondido e juntos personificam o caos indiferenciado original, o negativo do real criado num cadinho de potência por manifestar. Uma ogdóade que provoca a emergência do lótus no lago primordial de Khemenu, lótus donde nasce a criança sacrossanta, herdeiro perfeito que amalgama os embriões dos deuses e dos homens (Eliade, 1967: 86; Sales, 2007: 182-183; Sales, 2018: 12-15).
Finalmente, do Amon da ogdóade hermopolitana (personificação do oculto, invisível mas perceptível), os teólogos de Uaser, enquanto a cidade cresce como capital religiosa no Império Novo, fazem mais do que criador único, conflação de todas as noções de criação. Um deus “demasiado poderoso para ser conhecido”, tão transcendente que nem os outros deuses lhe conhecem o verdadeiro nome, tão pré-existente que antes de tudo se move sobre as águas qual Deus de Israel (Génesis 1: 2); um deus que se gera a si mesmo, se solidifica no ovo donde eclode acompanhado pelos outros sete “primeiro que gera os primeiros”. Um auto-criado inexplicável e oculto, depois elemental, que a seguir em vez de cair no esquecimento do resto da ogdóade, se transmuta em colina primordial, para finalmente emergir como deus solar, gerador da pesedjet de Iunu e portanto um deus total, de que todos os outros não passam de mera manifestação (Hart, 1990: 22-24).
Postas, mesmo que esqualidamente, as traves-mestras das quatro grandes escolas teológicas egípcias deve ser patente a pouca preocupação com a antropogénese; homens que tanto podem vir das lágrimas de Ré, como da roda de oleiro de Khnum, mas que são sempre interesse secundário para os teólogos egípcios (Eliade, 1967: 87; Hart, 1990: 25-28). Mais que patente deve também ser a capacidade de produzir modelos múltiplos e flexíveis dum politeísmo que, mais que um amontoado de deuses, é um processo criativo de organização e estruturação que lhes dá coerência e estabilidade (Sales, 2007: 169/184).
Evidentes também, devem ser os topoi, primeiro: o do caos originário, negativo e indistinto, incriado e obscuro, infinito e lodoso, indiferenciado e só virtual, um ainda-não-ser antes da “primeira vez” no “primeiro lugar”, mas mesmo assim potencialmente fons et origo, matriz de todas as possibilidades logo que se passe a charneira para o mundo criado (Eliade, 1949: 153; Sales, 2007: 171-173/183; Sales, 2018: 10-11).
Segundo: como a colina, o ovo, o logos de Ptah são antes de mais diferenciação. Criar é separar, distinguir, dar nome; quebrar a fundamental e indistinta unidade da ante-criação e ordenar numa tarefa separadora e organizadora que distingue progressiva, sistemática, detalhada e especificamente (Eliade, 1949: 349; Sales, 2007: 171; Sales, 2018: 10-11/16).
Finalmente, como esta realidade ordenada é contingente da crónica re-criação pelo rito. A ma’at – a intraduzível justiça, boa ordem, verdade – dos antigos egípcios que, seja qual for o demiurgo lhes lega, não é tão sólida que mantenha o indestrutível caos ao largo sem a crónica necessidade de re-equilíbrio ritual por um faraó divinizado. Faraó encarnação da própria ma’at num reino que mais do que estado, é doutrina religiosa, reino capaz de acomodar ao longo de, literalmente, milénios uma relação com o sagrado de unidade na multiplicidade, de dicotomias que jogam entre a sucessiva diferenciação e os contrários complementares, em concidentia oppositorum, de sucessivas criações sobre a Criação que burilam preceitos, arrumando e re-arrumando o panteão e a doutrina. Um sagrado que integrou teorias religiosas imensamente diferentes, justificou sempre o papel do rei, e manteve longe a ameaça de Apófis (Eliade, 1949: 341; Eliade, 1967: 84-90; Sales, 2007: 169-177; Tavares, 1995: 75).
Bibliografia
Bíblia Sagrada. Lisboa: Difusora Bíblica (Missionários Capuchinhos), 1988.
ELIADE, Mircea – Tratado de História das Religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2008 [1949].
ELIADE, Mircea – História das Ideias e Crenças Religiosas I da Idade da Pedra aos Mistérios de Elêusis. Porto: RÉS-Editora, s.d. [1967].
HART, George – Egyptian Myths. Austin: University of Texas Press, 1995 [1990].
SALES, José das Candeias – Estudos de Egiptologia – temáticas e problemáticas. Lisboa: Livros Horizonte, 2007.
SALES, José das Candeias – A criação do mundo no Génesis, na cosmogonia hermopolitana e na teologia menfita. in Hélade – dossiê Poder e Religião no Egito Antigo ano 4, volume 2 número 1, Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, 2018, pp. 8 – 28.
TAVARES, António Augusto – Civilizações Pré-Clássicas. Lisboa: Universidade Aberta, 1995.
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