História do Judaísmo 2 – O Gueto na diáspora.

Tentar-se-á neste trabalho, partindo não exclusivamente da história do ghetto nuovo veneziano, analisar como esta forma de organização sócio-geográfica condicionou os judeus europeus na passagem do Renascimento para a Modernidade, não só na sua relação com a envolvente cristã, mas também internamente, seja em termos sócio-políticos ou na sua relação com o sagrado.

Quando em Março de 1516 o governo da Sereníssima decreta o confinar dos judeus numa área específica do Cannaregio, entre o Canalazzo e o rio de San Girolamo, consegue, em resposta a um afluxo específico provocado pela derrota em Agnadello e seguindo um modelo já testado em grandes cidades islâmicas[i], criar na prática uma originalidade que marcará a vida dos judeus europeus por séculos. Se já antes os judeus tinham sido segregados para a Giudecca da ilha de Spinalunga ou para a terra firma de Mestre, o que se cria com a solução negociada do ghetto é, numa Europa num pico de anti-judaísmo, pouco menos que um oásis, um espaço segregado para cidadãos de segunda sobretaxados e permanentemente vigiados, mas mesmo assim quase um oásis.

No Norte a perseguição faz-se feroz, expulsões sumárias em Viena e Linz (1421), Colónia (1424), Augsburgo (1439), Baviera (1442 e 1450), Morávia (1454), expulsões que provocam expulsões pelo avolumar das comunidades com refugiados: Perúgia (1485), Vicenza (1486), Parma (1488), Milão e Luca (1489)[ii]. E o pior ainda está por vir, os reyes católicos conquistam Granada e, resolvido o problema mouro, imediatamente se concentram no judaico: o Édito de Expulsão é assinado em Março e quatro meses depois, por Julho de 1492, desapareceram 200 mil judeus de Espanha[iii]. Metade foge para Portugal, para sob um D. Manuel em negociações matrimoniais com os católicos, descobrirem uma nova prisão de extorsão[iv], sequestro de filhos e conversões forçadas, conversões forçadas que não os salvarão do pogrom lisboeta de 1506[v]; o Mediterrâneo inunda-se de errantes em busca de refúgio[vi].

Popularmente grassa a iconografia da Judensau[vii], do libelo do sangue de Simonino de Trento, do Eterno Judeu da via dolorosa de Cristo[viii]; entre a élite, por mais humanista e hebraísta que seja, o judaísmo é para manter à distância: o preclaro Erasmo chama-lhes praga e pergunta-se como não odiar tal raça de homens[ix]. Lutero com o “Sobre os Judeus e as suas mentiras” de 1543 escreve o que Johnson descreve como o primeiro tratado de moderno anti-semitismo, um enorme passo na direcção do Holocausto, incentivando maciças perseguições por parte dos novos protestantes; a Contra-Reforma, por seu lado, equivale judeus a heréticos[x], entrega-os ao braço inquisitorial e, eventualmente com Paulo IV e a sua Cum nimis absurdum, condena-os à servidão perpétua pela culpa colectiva na morte de Cristo[xi], enquanto os cavaleiros de São João lhes fazem da caça e resgate um negócio a que nem em navios cristãos escapam[xii]. Aplica-se à Humanidade numerus clausus[xiii], bem pode Shylock perguntar-se se quando lhe fazem cócegas, também ele não se ri[xiv], a desumanização abre o caminho ao genocídio.

Mas em Veneza mura-se o espaço das antigas fundições militares, entretanto transferidas para o Arsenale, vedam-se as janelas que dão para o exterior, equipam-se a expensas da própria comunidade quatro torres de vigia e dois barcos-patrulha e, mesmo que vigiados, sobretaxados e fechados à noite, garante-se aos judeus a permanência. Num mundo de populacho cristão sempre pronto a atacar e de príncipes voláteis e pouco confiáveis, mais terrível que a humilhação dum estatuto subordinado, é a arbitrariedade, a permanente incerteza, o terror hebraico[xv].

O gueto fervilha de judeus italianos, asquenazes, sefarditas, levantinos, até mori, a seu tempo construirão quatro sinagogas concorrentes onde se discutem engenhosos argumentos sobre o uso de gondolas ao Sábado; a vida cultural torna-se intensa e o gueto exporta teatro, matemática, astronomia, e economia em italiano; o produto floresce a ponto dos rabis definirem regras anti-sumptuárias para prevenir a inveja (e logo o ódio) dos gentios, a vida no gueto é colorida e enérgica, os debates tempestuosos[xvi].

E como sublinha Schama, malgrado muros e patrulhas, o gueto não é prisão: durante o dia o trânsito e o tráfico em ambas as direcções é constante e mesmo depois do fecho nocturno de portas e pontes o gueto não se veda completamente; em vez de segregação isolante o que se assiste é a uma momentosa transacção bidireccional: o contacto e descoberta dos judeus pelos gentios tinha necessariamente de contrariar a campanha de desumanização, fosse a da Reforma ou a da Contra-Reforma[xvii]. Mas é na expectativa duma segregação isolante que Paulo IV importa o modelo para Roma, remetendo os judeus romanos para o serraglie murado da margem esquerda do Tibre, modelo estendido rapidamente a todo o território pontifical, chamado especificamente de “gueto” a partir de 1562 em todas as leis anti-judaicas, e eventualmente, por pressão papal, introduzido na Toscânia (1570), Verona (1599), Pádua e Mântua (1601)[xviii]. A lógica do pequeno estado judaico em relativa autarcia dentro do grande estado cristão estender-se-á ao ponto dalguns casos de auto-guetização em vez de guetização legalmente imposta, como em Amsterdão[xix].

Mas o refrigério do gueto era frágil se não apenas ilusório, o levantamento camponês ucraniano de 1648 e a facilidade com que as autoridades polacas entregam judeus aos cossacos demostram-no[xx]; o gueto começa a desenvolver o que Johnson descreve como um dualismo paradoxal[xxi]: Os judeus guetizados, anti-clericais desde a queda do Segundo Templo e congregacionalistas muito antes dos protestantes, colhendo da capacidade de adaptação e movimento[xxii] e duma racionalização inevitável pelo entrelaçamento do rabinato e do negócio, vêem o mundo externo, o mundo dos gentios cristãos ou muçulmanos com os olhos desapaixonados e afiados de quem foi excluído do investimento emocional. O que resulta numa explosão de empreendedorismo mercantil, numa perene capacidade de inovação financeira que, numa Europa em progressiva secularização do poder, rapidamente se torna indispensável; no fim dos seiscentos, são poucos os potentados que “não lidam com José”[xxiii].  

Mas, em direcção contrária, internamente o racionalismo optimista dum Maimónides recua perante o reforço das autoridades tradicionais: o controlo social comprime, o patriarcado subordina, a catedrocracia dos eruditos desencoraja a especulação (Uriel da Costa e Spinoza que o digam), se os olhos para fora se afiam, para dentro tornam-se opacos, os rabis anseiam por muros mais altos[xxiv]. O misticismo irracionalista frutifica, a Cabala democratiza-se e escatologiza-se com as noções de Sião e a possibilidade dum Messias príncipe libertador, redentor das Tribos e reconstrutor do Templo[xxv]. O David “filho do rei Salomão e irmão do rei José” que desembarca na Tavira de 1526 expõe os anseios messiânicos em que viviam os super-cuidadosos cristãos-novos portugueses, a extática reconversão (com auto-circuncisão) dum Diogo Pires em Shelomo Molkho[xxvi] acompanha bem a explosão dum folclore supersticioso de gueto carregado de demónios e anjos, de golems e dybbukim[xxvii].

A expansão da Revolução Francesa e Napoleão hão de derrubar os muros dos velhos guetos (pelo menos até à Renânia) e devolver estes novos judeus a um mundo que ao invés de os acolher numa cidadania universal, os recebe num contemporâneo anti-semitismo que ainda hoje perdura[xxviii]. Um anti-semitismo que balança noutro paradoxo, o paradoxo entre a desconfiança perante uma Ester cripto-judaica que não revela sua raça nem a sua família[xxix] e uma Judite que nos prende pelos olhos[xxx], só para mais facilmente nos degolar e nos apresentar a decapitação no cortinado do doce ao povo e Senhor de Israel[xxxi]; um anti-semitismo que graças a um contínuo deslocamento de registro retórico nos apresenta uns judeus, ao mesmo tempo, sempre demasiado fracos e sempre fortes demais[xxxii].

Bibliografia

Bíblia Sagrada. Lisboa: Difusora Bíblica (Missionários Capuchinhos), 1988.

ECO, Umberto – O Fascismo Eterno. in Cinco Escritos Morais. Rio de Janeiro: Editora Record, 1998 [1995], pp. 15 – 26.

JOHNSON, Paul – A History of the Jews. London: Harper Collins Pub., 2006 [1987].

SARTRE, Jean-Paul – Préface. in Fanon, Frantz Les Damnés de la Terre. Paris: La Découverte, 2002 [1961], pp. 17 – 36.

SCHAMA, Simon – A História dos Judeus – Pertencimento 1492 - 1900. São Paulo: Companhia das Letras, 2024 [2017].

SHAKESPEARE, William – The Merchant of Venice. in Complete Works. Glasgow: Harper Collins Pub., 1994 [1598], pp. 243 – 274.



[i] JOHNSON, P. – A History of the Jews, pp. 234 – 235.

[ii] JOHNSON, P. cit. i, pp. 230 – 233.

[iii] JOHNSON, P. cit. i, p. 229.

[iv] SCHAMA, S. – A História dos Judeus – Pertencimento, p. 22.

[v] SCHAMA, S. cit. iv, pp. 28 – 29.

[vi] JOHNSON, P. cit. i, p. 230.

[vii] JOHNSON, P. cit. i, pp. 231 – 232.

[viii] Mateus 16: 28.

[ix] Erasmo de Roterdão cit. in JOHNSON, P. cit. i, p. 241.

[x] JOHNSON, P. cit. i, pp. 242 – 243.

[xi] SCHAMA, S. cit. iv, p. 113.

[xii] JOHNSON, P. cit. i, p. 240.

[xiii] SARTRE, J-P. – Préface, p. 23.

[xiv] SHAKESPEARE, W. – The Merchant of Venice, p. 259.

[xv] JOHNSON, P. cit. i, pp. 235 – 236 / 257.

[xvi] JOHNSON, P. cit. i, pp. 236 – 238.

[xvii] SCHAMA, S. cit. iv, pp. 100 / 168 – 170.

[xviii] JOHNSON, P. cit. i, pp. 243 – 244; SCHAMA, S. cit. iv, pp. 113 – 114.

[xix] JOHNSON, P. cit. i, p. 280.

[xx] JOHNSON, P. cit. i, pp. 259 – 260.

[xxi] JOHNSON, P. cit. i, p. 287.

[xxii] JOHNSON, P. cit. i, pp. 246 – 247.

[xxiii] JOHNSON, P. cit. i, pp. 252 – 255.

[xxiv] JOHNSON, P. cit. i, pp. 238 / 247 / 260 / 287 / 295 / 299.

[xxv] JOHNSON, P. cit. i, p. 260; SCHAMA, S. cit. iv, p. 9.

[xxvi] SCHAMA, S. cit. iv, pp. 11 / 30 – 37.

[xxvii] JOHNSON, P. cit. i, p. 265.

[xxviii] JOHNSON, P. cit. i, pp. 306 / 310.

[xxix] Ester 2: 10.

[xxx] Judite 10: 17.

[xxxi] Judite 13: 19.

[xxxii] ECO, U. – O Fascismo Eterno, p. 23.


 

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