Religiões Helenísticas 2 – O culto real na Época Helenística.

Tentar-se-á neste trabalho, a partir de Lagos e Oyarce, identificar os principais traços do que foram os cultos reais da época helenística. Se o objectivo é assumidamente vago é porque se trata dum fenómeno de especial complexidade, que não só levanta ainda incertezas sobre a eclosão (Lévêque, 1988: 150) como, apesar do evidente entrelaçar do religioso e do político, se mostra, pela inexistência de regras gerais, muito resistente a uma conceptualização simples e fechada; sobrando dizer pelo menos que é muito mais do que a simples degeneração oriental de Plutarco (Lagos/Oyarce, 2016: 185/190/196).

É na esteira do ciclónico Alexandre, entre a crise social provocada pelos sucessivos conflitos dos diádocos, o soçobrar do modelo das polei independentes e a influência dum Oriente bem menos laico que a religião cívica dos gregos, que surgem os primeiros esquissos dum culto aos reis (Lévêque, 1987: 145; Lévêque, 1988: 149/151). O que não significa o simples fim da religião tradicional grega, não só porque os antigos santuários continuam cheios de fiéis, mas também porque o cânone ritualístico clássico será transportado para os novos cultos reais (Lagos/Oyarce, 2016: 203-204).

Sendo fácil ver na divinização real reverberações orientais, a ponto de se falar em conquista espiritual, a verdade é que nem a religião tradicional grega era, antes de Alexandre, assim tão intocada por influências externas (Petit, 1987: 65-66); como trazia desde sempre a hipótese de divinização de mortais (por vínculo aos deuses ou apoteose) como, finalmente, já tinha a tradição cultual a heróis benfeitores na ambiguidade teológica das isothéoi timai, as “honras similares às dos deuses”, que garantiriam se não o Olimpo, as Ilhas dos Bem-Aventurados onde os frutos doces florescem três vezes ao ano (Hesíodo cit. in Ferreira, 1996: 258) e que um desgostoso Alexandre exige para Heféstio Amíntoro (Lagos/Oyarce, 2016: 191/194/200-201).

No Mediterrâneo das instáveis mudanças provocadas pelos diádocos, não é de complexa compreensão a viragem dos crentes para divindades mais materialmente activas, que prestem socorro, salvíficas (Lévêque, 1987: 152); com monarquias em crónico evergetismo ao mesmo tempo que se procuram legitimar para além do direito da lança, nunca Lagos e Oyarce são tão sagazes como quando apontam o vínculo entre euergesía e epipháneia na génese deste fenómeno: a capacidade benfeitora dos monarcas reflecte-se nas epicleses (Salvador, Benfeitor, Manifesto) (Lagos/Oyarce, 2016: 199-202), os fiéis cantam-lhes a proximidade “tu, Demétrio, vemos-te aqui presente” (Lévêque, 1987: 145), a parousia passa de presença real a presença divina (Petit, 1987: 63).

Contagiadas pela aura divinizante que rodeava Alexandre, as dinastias dos diádocos reinarão sobre este fenómeno dificílimo de conceptualizar, porque muito mau de circunscrever e muitas vezes internamente contraditório: sendo evidente o interesse dos monarcas em fomentar a própria divinização, o movimento é inicialmente espontâneo (Lévêque, 1988: 149). Carregado que seja de ideologia orientalizante, as primeiras manifestações são em Atenas e Rodes, cidades muito gregas (Petit, 1987: 63). Poderia parecer caso de culto dinástico, mas nada garante veneração a todos os membros da linhagem: o que é verdade para os Lágidas não é para os Selêucidas, e mesmo no caso dos Lágidas se as inscrições egípcias fazem do rei Hórus vivo, as gregas apresentam-no como soberano filantrópico (Lagos/Oyarce, 2016: 188; Lévêque, 1988: 150-151). Mesmo chamar-lhe culto real é redutor, porque temos casos como o da Liga Aqueia, que dá ao culto Arato e Filopémen, meros strategoi e não basileī (Lagos/Oyarce, 2016: 189-190).

Temos situações, dentro dum mesmo estado, em que são os cidadãos a declarar o rei como deus - Mileto a Antioco II - ou o próprio monarca a autodivinizar-se - Antíoco IV - e momentos em que um mesmo basileus é deus numa parte do reino mas não noutra - Demétrio Poliórcetes em Atenas e na Macedónia (Lagos/Oyarce, 2016: 186-187).

Temos também diferentes tratamentos quanto às consortes: se as ptolomaicas Arsínoes e Cleópatras são divinizadas em bloco, entre as atálidas só Apolonis de Cízico é declarada Eusebés, e entre as selêucidas só Laodice III tem direito a culto em todas as satrapias, enquanto uma Estratónice a mero culto local (Lagos/Oyarce, 2016: 188-189). Fora isso, ainda casos como o de Pérgamo, em que os governantes só divinizam os respectivos antecessores, numa previsão dum Octávio que mais que deus, anseia por ser divi filius (Lagos/Oyarce, 2016: 187-188; Syme, 1956: 202). Cultos que tanto permanecem ou se esfumam conforme a sorte política do homenageado e bando promotor local como duram séculos; cultos que da tradição ritualística grega fazem bricolage com sacrifícios, libações, estátuas cultuais ou meros eikonoi, festivais, procissões, templos, recintos sacros ou altares e mudanças de calendário, raramente incorporando todos os recursos, mas nunca os desprezando; cultos que não emergem sem conflito, sem acusações de hýbris, megalomania e bárbaro sacrilégio (Lagos/Oyarce, 2016: 195/199-203).

Cultos que, ao invés de reflectirem a decadência religiosa grega, reflectem o dinamismo dum mundo helenístico que é uma Grécia maior, eivada de ambiguidades, contradições e propagandas dum “religioso ao serviço do político” é certo, mas que cria claramente uma expressão religiosa dum social específico, uma expressão religiosa compósita, mas viva e calorosa (Lagos/Oyarce, 2016: 191-192/204-205; Lévêque, 1988: 157).

Bibliografia

FERREIRA, José Ribeiro – Civilizações Clássicas I Grécia. Lisboa: Universidade Aberta, 1996.

LAGOS ABURTO, Leslie; OYARCE de la FUENTE, Pablo – El estúdio del culto al soberano em el mundo helenístico: Problemas metodológicos. in Limes – Revista de Estudios Clásicos n.º 27, Santiago: Centro de Estudios Clásicos Giuseppina Grammatico Amari – Universidad Metropolitana e Ciencias de la Educación, 2016, pp. 183 – 209.

LÉVÊQUE, Pierre – O Mundo Helenístico. Lisboa: Edições 70, 1987 [1969].

LÉVÊQUE, Pierre – 3. A Religião Grega d) O Período Helenístico. in Grécia e Mito, Lisboa: Gradiva, 1988, pp. 148 – 157.

PETIT, Paul – A Civilização Helenística. São Paulo: Martins Fontes, 1987 [1962].

SYME, Ronald – The Roman Revolution. Oxford: Clarendon Press, 1956 [1939].


 

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