Temas de Cultura e Religião Idade Média 2 - Mulheres e maternidade na Idade Média.

Procurar-se-á neste trabalho compreender o papel da maternidade na vida das mulheres medievais, relacionando este papel da sua existência com as construções ideológicas que sustentavam a estrutura social e justificavam o padrão cultural coevo.

No esforço de tentarmos vislumbrar as mulheres medievais, é fundamental sublinhar quão inaudível é a voz das principais interessadas; as nossas observações são sempre, como aponta Klapisch-Zuber, escravas das nossas fontes[i] e neste caso, as fontes são esmagadoramente homens a escrever sobre o que as mulheres eram, ou mais das vezes, o que deveriam ser. Por evidente que a condição feminina fosse complexa[ii], para estes homens, na sua maioria clérigos e moralistas, a mulher não é enquadrável no esquema tripartido e por isso é antes de mais vista a partir do seu corpo (género) e da relação que mantém com a unidade familiar[iii].

Por mais óbvio que seja o significado produtivo do trabalho feminino, a diferenciação económica entre altas nobres e pequenas camponesas[iv] e, sem termos modo de atestar com que grau de submissão as ideias eram recebidas pelas visadas (para além da evidente necessidade de as ouvirem repetidas por séculos)[v], o certo é que a Idade Média é tempo em que estes clérigos passam da liturgia à pedagogia[vi]. Pedagogia duma ideologia que fará das mulheres europeias objecto duma experiência social de controlo da sexualidade, uma sexualidade, idealmente, circunscrita entre a recusa e a procriação legitimada pela Igreja[vii], uma sexualidade de mulheres castas, humildes, custodiadas e submissas.

Submissas, antes de mais, porque filhas de Eva e tal determinam as Escrituras[viii], submissas porque naturalmente incapazes da virtus (até etimologicamente qualidade masculina)[ix], submissas porque plenas duma infirmitas que as torna débeis[x] e presa frágil das tentações[xi]: “A carne mais a mulher, dupla enfermidade” proclamam os teólogos[xii], pouco mais que “homens mutilados” descreve a Autoridade[xiii], com excesso de humidade que as torna capazes de receber mas não de conservar, moles, inconstantes, instáveis e irrequietas tanto de corpo como de alma, descreve a “ciência”[xiv].       

Pode ser fácil hoje, neste transido terror clerical da sexualidade e corpo feminino[xv], reconhecer traços de projecção psicológica[xvi]; nesta construída perversidade estrutural da natureza feminina[xvii] que faz das mulheres lobas rapaces[xviii] que mesmo em casa, se em frente a um espelho, se imaginam logo no prostíbulo[xix]; mas a construção é de tal modo premente que até uma mulher tão brilhante como Heloísa, se espanta quando o seu brilhante marido desrespeita a “ordem natural” ao tratá-la como uma igual[xx]. A possibilidade de insubordinação feminina põe em perigo a própria ordem do mundo[xxi], como mostra o cronicamente repetido exemplo de Dina, filha de Jacob[xxii]: Dina vai à rua para conhecer as outras raparigas, Dina é “ultrajada”, o “ultraje” provoca uma guerra[xxiii].

É daqui que decorre o que Duby chama o incessantemente repisado elogio da virgindade: Cristo prefere-as, evidentemente, intactas; mas como arrancar estas tendenciais pecadoras das garras do maligno?[xxiv] Com a reforma gregoriana, que se esforça por moralizar o clero masculino, enclausurar o feminino e “marianizar” a fé popular[xxv], assistimos a pais e maridos a procederem a um fechamento doméstico das mulheres a seu cargo[xxvi]: quartos de filhos abertos enquanto os das filhas trancados, uma funda ansiedade com a ida à missa, até com o perigo que são as janelas[xxvii]; o pecado continua no corpo de Betsabé muito mais do que nos olhos de David[xxviii]. Sobre estas mulheres, crónicas menores a necessitar de tutela permanente[xxix], institucionaliza-se uma custódia masculina em que reprimir é proteger[xxx]; em que a palavra-chave das relações é sempre autoridade[xxxi], mas uma autoridade que se justifica como único modo delas chegarem à salvação[xxxii].

Mais, como é que este ambiente ideológico se reflecte na maternidade? Numa sociedade que idealiza a virgindade ao ponto dum Santo Agostinho que gaba o casamento assexuado[xxxiii], fundamentalmente preocupada com o controlo das mulheres mas que ao mesmo tempo só de metade das gravidezes consegue produzir adultos[xxxiv], qual é o papel da mulher fértil, mesmo que legitimamente casada? Duby é claro: se fecunda vive na ansiedade, se estéril morre de desgosto[xxxv]. Por mais legitimado que o acto sexual seja pelo bíblico crescei e multiplicai-vos[xxxvi], o matrimónio é antes de mais caso de casar para não abrasar[xxxvii], o Doctor Gratiae é límpido: o casamento é para procriar e todo o acto fora desse objectivo é bestial, e com o famoso exemplo do coxo que coxeia a caminho duma coisa boa, fecha a discussão sobre o lugar da luxúria entre casados, se o que os move é o prazer em vez do desejo de conceber, nem esposos já são[xxxviii].

As altíssimas mortalidades perinatal e infantil associadas a um cada vez mais restrito calendário sexual e à crónica suspeição, que paira sobre a fidelidade à linhagem receptora, destas esposas-peões da permanente troca de mulheres entre famílias; empurra as idades nubentes em direcções opostas: duns jovens adultos, tanto eles como elas, na Alta Idade Média, para os maduros estabelecidos a casar com púberes e pré-púberes que encontraremos no Renascimento[xxxix]. Isto enquanto os moralistas erigem um sistema também tripartido para as mulheres, que as organiza entre virgens, casadas e viúvas; a pontuação moral é expressa: a castidade das virgens vale mais do dobro da das viúvas e mais do triplo da das casadas[xl].

Desvalorizadas espiritualmente, mas essenciais para o prolongamento das linhagens, vêem-se, nas casas com possibilidades para isso, fechadas em gineceus, verdadeiros estados dentro do estado, ao mesmo tempo hostis e sedutores à presença masculina, absolutas couveuses e reserva de mulheres para a troca matrimonial[xli]. Mulheres de quem pais e maridos esperam obediência cega, ou pelo menos silêncio[xlii], já dizia São Paulo não lhes é permitido falar, mostrem-se submissas[xliii]; à possível resistência responde a sabedoria popular com um “boa esposa e boa criada, toda a mulher quer pancada”[xliv]. Idealmente esvaziadas de qualquer agência, os moralistas vão mais longe, nem no commixtio legítimo e com fins reprodutivos é especialmente tolerável o prazer; as casadas que se lembrem que se são courela para este marido terreno lavrar (iste), a alma pertence a outro esposo celeste (ille) que franze o sobrolho: não só a gravidez e parto[xlv], mas até a concepção precisa de ser dever penoso[xlvi].      

Assim, se não canalizada pela escápula das comunidades religiosas femininas[xlvii], da boa esposa medieval esperava-se moderação de modos, modéstia de palavras, sobriedade à mesa e castidade na cama; se privilegiada, símbolo da exploração senhorial, moralizava o privilégio pela renúncia[xlviii]. Casada na puberdade, não era extraordinário o caso da burguesa de Arras de 1461, viúva aos 29 anos, com 12 partos em 13 anos de casamento[xlix].

Filhos que, sempre que existiam possibilidades, passavam o primeiro ano de vida fora de casa entregues a amas-de-leite (até mais, nalguns casos mais de metade só voltavam ao fim de ano e meio)[l], os que sobreviviam às altíssimas mortalidades infantis, regressavam a casa para ser finalmente entregues à mãe. Meninas ou meninos, tinham no pater familias uma figura distante e sempre eivada de autoridade, enquanto passavam a primeira infância entregues ao gineceu familiar. Centrais na primeira aculturação infantil, mãe e restante círculo feminino familiar não escapavam à reprovação dos habituais moralistas eclesiásticos, que rapidamente viram no apagamento do pai e nesta primeira educação feminizada, a raiz dum certo “amolecimento” dos rapazes[li].

Finalmente, existem dois pontos de análise aos quais temos enormes dificuldades em chegar: como se reflectia esta doutrina acima e abaixo na estrutura social medieval. É evidente que o trabalho moralizante era apontado a um grupo privilegiado de “grandes paroquianas” nobres ou da alta-burguesia e era expectável que o exemplo de cima motivasse as de baixo, onde necessariamente (por meras razões materiais) era impossível o ideal isolamento e controlo feminino. E em que medida esta ideologia era aquiescida, resistida ou recusada pelas visadas, Klapisch-Zuber não hesita em não a só ver cronicamente discutida, como inevitável fonte de conflito doméstico e social[lii].     

Bibliografia

Bíblia Sagrada. Lisboa: Difusora Bíblica (Missionários Capuchinhos), 1988.

ABELARDO, Pedro; HELOÍSA – As Cartas de. (trad. Laura Vasconcellos) Lisboa: Guimarães Editores, 2003.

AGOSTINHO de HIPONA – On Marriage and Concupiscence. in Complete Works, s.l., https://archive.org/details/the-complete-works-of-saint-augustine, 2013, pp. 9020 – 9161.

ANDRADE, Maria Filomena Pimentel de Carvalho – In oboedientia, sine próprio, et in castitate, sub clausura – A Ordem de Santa Clara em Portugal (sécs. XIII - XIV). Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – U.N.L., 2011.

ARISTÓTELES – De Generatione Animalium. in The Works of Aristotle (ed. J.A. Smith, W.D. Ross). Oxford: Clarendon Press, 1912, pp. 715a – 789b.

CASAGRANDE, Carla – A Mulher sob Custódia. in Duby, Georges; Perrot, Michelle (org.) História das Mulheres 2 A Idade Média. Porto: Afrontamento, 1990, pp. 99 – 141.

DUBY, Georges – As Damas do séc. XII vol. 3 – Eva e os padres. Lisboa: Teorema, 1997 [1995].

DUBY, Georges; BARTHÉLEMY, Dominique; LA RONCIÈRE, Charles de – Quadros. in Ariès, Philippe; Duby, Georges (dir.) História da Vida Privada 2 Da Europa Feudal ao Renascimento. Porto: Afrontamento, 1990 [1985-87], pp. 46 – 309.

FREUD, Anna – The Ego and the Mechanisms of Defence. London: Hogarth Press / Institute of Psycho-Analysis, 1937 [1936].

KLAPISCH-ZUBER, Christiane – A Mulher e a Família. in Le Goff, Jacques (dir.) O Homem Medieval. Lisboa: Presença, 1989 [1987], pp. 193 – 208.



[i] KLAPISCH-ZUBER, C. – A Mulher e a Família, p. 194.

[ii] CASAGRANDE, C. – A Mulher sob Custódia, p. 108.

[iii] KLAPISCH-ZUBER, C. cit. i, p. 193.

[iv] KLAPISCH-ZUBER, C. cit. i, pp. 207 – 208.

[v] CASAGRANDE, C. cit. ii, pp. 99 / 138.

[vi] DUBY, G. – As Damas do séc. XII, p. 80.

[vii] CASAGRANDE, C. cit. ii, pp. 111 – 112.

[viii] Génesis 3: 16.

[ix] DUBY, G. cit. vi, p. 83.

[x] CASAGRANDE, C. cit. ii, p. 122.

[xi] ANDRADE, M.F.P. de C. – In oboedientia, sine proprio, et in castitate, sub clausura, p. 47.

[xii] Hildeberto de Lavardin cit. in DUBY, G. cit. vi, p. 85.

[xiii] ARISTÓTELES – De Generatione Animalium, p. 737a.

[xiv] CASAGRANDE, C. cit. ii, pp. 119 – 120.

[xv] KLAPISCH-ZUBER, C. cit. i, p. 199.

[xvi] FREUD, A. – The Ego and the Mechanisms of Defence, pp. 55 – 56.

[xvii] DUBY, G.; BARTHÉLEMY, D.; LA RONCIÈRE, C. de – Quadros, p. 90.

[xviii] Rogério de Caen cit. in ANDRADE, M.F.P. de C. cit. xi, p. 46.

[xix] Gilberto de Tournai cit. in CASAGRANDE, C. cit. ii, p. 127.

[xx] ABELARDO, P.; HELOÍSA – As Cartas de, p. 179.

[xxi] KLAPISCH-ZUBER, C. cit. i, p. 207.

[xxii] CASAGRANDE, C. cit. ii, p. 116.

[xxiii] Génesis 34.

[xxiv] DUBY, G. cit. vi, pp. 81 / 88 – 89.

[xxv] ANDRADE, M.F.P. de C. cit. xi, pp. 49 – 52.

[xxvi] CASAGRANDE, C. cit. ii, p. 117 – 118.

[xxvii] DUBY, G.; BARTHÉLEMY, D.; LA RONCIÈRE, C. de cit. xvii, pp. 80 / 288 – 289.

[xxviii] II Samuel 11: 2 – 4.

[xxix] DUBY, G. cit. vi, p. 83.

[xxx] CASAGRANDE, C. cit. ii, p. 120 – 121.

[xxxi] KLAPISCH-ZUBER, C. cit. i, p. 205.

[xxxii] DUBY, G. cit. vi, p. 100.

[xxxiii] AGOSTINHO de HIPONA – On Marriage and Concupiscence, p. 9048.

[xxxiv] KLAPISCH-ZUBER, C. cit. i, p. 204.

[xxxv] DUBY, G. cit. vi, p. 91.

[xxxvi] Génesis 1: 22.

[xxxvii] I Coríntios 7: 9.

[xxxviii] AGOSTINHO de HIPONA cit. xxxiii, pp. 9037 / 9043 / 9055.

[xxxix] DUBY, G.; BARTHÉLEMY, D.; LA RONCIÈRE, C. de cit. xvii, pp. 80 – 82 / 143;  KLAPISCH-ZUBER, C. cit. i, pp. 200 – 202.

[xl] CASAGRANDE, C. cit. ii, p. 112 – 113.

[xli] DUBY, G.; BARTHÉLEMY, D.; LA RONCIÈRE, C. de cit. xvii, pp. 51 / 80 / 89.

[xlii] KLAPISCH-ZUBER, C. cit. i, pp. 197 – 198.

[xliii] I Coríntios 14: 34.

[xliv] DUBY, G.; BARTHÉLEMY, D.; LA RONCIÈRE, C. de cit. xvii, p. 212.

[xlv] Génesis 3: 16.

[xlvi] DUBY, G. cit. vi, pp. 107 – 110.

[xlvii] ANDRADE, M.F.P. de C. cit. xi, p. 48.

[xlviii] DUBY, G. cit. vi, pp. 102 / 105.

[xlix] KLAPISCH-ZUBER, C. cit. i, p. 201.

[l] DUBY, G.; BARTHÉLEMY, D.; LA RONCIÈRE, C. de cit. xvii, p. 224.

[li] DUBY, G.; BARTHÉLEMY, D.; LA RONCIÈRE, C. de cit. xvii, p. 214.

[lii] CASAGRANDE, C. cit. ii, p. 108 – 110; DUBY, G. cit. vi, p. 82; KLAPISCH-ZUBER, C. cit. i, p. 207 – 208.


 

Comentários

Enviar um comentário