Filho de tolo.

Eu tive a sorte de nascer católico,

fui a pouco e pouco acumulando mentiras, absurdos, suaves aceitações de crimes horrendos até que uma menor questão absolutamente teológica e abstracta e absurda e inexistente, no caso, os bebezinhos por baptizar irem todos penar para o Purgatório até ao literal fim dos tempos, como diria o tio Zé Mário, carrenhadinhos de culpa e eles sem culpa nenhuma, me mandar a puta da construção toda para a casa do caralho mais velho.

Tudo varrido: céuzinho, o menino Jasus, a mãezinha dele, os três pastorinhos, as culpas da masturbação, a hipótese da transubstanciação, a possibilidade de autoridade natural, os cabeções dos padres, as gravatas dos ministros e dos CEOs, o tom dos mestres-escola e a musiquinha dos anúncios. Para o bem e para o mal, quando vi Deus Pai Nosso Senhor como o tigre de papel de jornal encharcado em mijo que Ele uma vez tentou ser, percebi a vacuidade que a estupidez militante ocupava na minha existência; e graças ao facto de ter olhos e ouvidos e alguma coisa atrás deles foi tudo duma só vez, como uma daquelas cagadas monumentais que estremecem a sanita e tu vês a água a desaparecer toda e há um segundo de silêncio extremamente silencioso e a canalização dá como que um arroto antes do chão tremer e a água voltar como que um “ok, já foi, já está tudo normal”.

Sempre continuei a ter enorme tolerância com os crentes de quase todos os disparates, porque ensopado em Voltaire, formulação que todos os crentes levam sempre muito a mal (como se conseguissem outro tanto), mas o ponto hoje não é esse.

Vocês, dispensadas do ordálio do catolicismo de berço (e falo de ti mas como de costume ainda mais da tua irmã), acabam a carregar merdas no porta-luvas, discretamente e sem sequer se aperceberem, que vítimas mais óbvias como eu escoiceamos com muito mais limpeza. É natural ser-se filho de tolo porque todos os humanos o somos e quase sobrenatural é aceitar que os amamos apesar do carrego de tolice com que nos ajoujaram... é duro amar tolos, mas é inevitável e isso é verdade para ti como para mim como para a minha filha, tua sobrinha. Todos erramos feio, erramos rude, os nossos velhos ainda mais imperdoavelmente do que nós com os nossos mais novos, mas só porque agora somos nós a escrever a história... imagina o que os putos dirão dos nossos absurdos, das nossas insuficiências enquanto humanos!


 

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