A Sara Correia, o fado, o salão, e ainda a Deslandes.
Cool, cool, cool... isto está muito muito interessante. O jeito que me dava aqui um Rui Vieira Nery!
Há sempre um monte de maneiras de olhar para as coisas. Se olhares especificamente para o fado se calhar a maneira mais óbvia do organizar mentalmente é dividi-lo entre o especificamente lisboeta, o coimbrão dos gemedores de batina e o marialva ribatejano dos toiros e dos cavalos... grosso modo esta é a categorização que me é mais automática, por falha e insuficiente que seja como todas as classificações.
Há outra que também me é relativamente automática. A de classe cruzada historicamente: o fado começa como coisa de bas-fond putas e chungaria e marinheiros a dançar uns com os outros quando as putas não chegam para os machos todos (ok com uns condes toureiros e pintores finos à mistura) mas o filme é basicamente o da Adelaide da Facada e do Amâncio do Malhoa. Eventualmente a coisa sobe ao teatro popular e até vai ao salão das élites, mas continua a entrar pela porta de trás com a criadagem, é a Hermínia a cantar sobre as ásias do vento, a intelectualidade moderna mais ou menos fascista (o Ferro, o Almada) desprezam-no, mas depois vem a Amália.
A Amália é uma revolução de saltos muito altos e vestidos com a cintura rebaixada; totalmente povinho faminto mas em dois pulos estava-me em Hollywood a flirtar com o Anthony Quinn e em Cannes a ser entrevistada em francês e italiano ao mesmo tempo... e a esmagar. Pelo meio recebe a Cruz de Cristo do Botas enquanto dá dinheiro ao PC e enche o salão com poetas esquerdistas e franceses a escrever os melhores fados de sempre... a coisa confunde-se um bocado.
Dum momento para o outro cantar o fado é respeitável: a Lucília do Carmo (a mãe do outro) abre a porta por onde hão de jorrar legiões de betinhas e mais ou menos primas da Marta que nos assolam até hoje: as Carminhos da vida, que em rigor não são fado marialva ribatejano (até porque este é exclusivamente masculino e machinho dos bois e cavalgaduras) mas absolutamente aristocrata (pelo menos alta-burguesia) por mais que especificamente lisboeta.
A “elevação” a arte respeitável que a Amália, e o Oulman e o Mourão-Ferreira, operam há de abrir as portas a rebites lindos como o Camané e a Mísia e a Aldina, um fado cabeça mais ou menos popular e esquerdalho, mas em rigor definitivamente letrado e classe média ab initio.
Mas não mata o fado que continua lá abaixo do salão, a Hermínia range os dentes e lidera a reação contra o fado que sabe comer à mesa lá da mansão da Rua de São Bento (já te falei disto), mas não tem hipótese face ao gigantismo da Sô Dona. Mas há de vir o tio Fernando e começar a fazer a reintegração da Amália, pela Mariza com Z já a Amália é do povo outra vez e o fado continua a ser do povo.
O povo continua a produzir fadistas atrás de fadistas mas o aggiornamento está difícil, ou fogem para cima aburguesando, intelectualizando e +ou- internacionalizando (Ana Moura, Mariza, Ricardo Correia) ou desistem (Raquel Tavares)... dá-se-me um cheiro de esperança com o Conan para um específico fado popular de hoje em dia, mas o Conan é um bicho demasiado out para empurrar um movimento, e hoje sai-se-me esta.
A bicha já eu conhecia, parece que sou bruxo! Mas desta não estava à espera... dizia eu em 2019 que temos bicho, e temos mesmo, e sério:
https://www.youtube.com/watch?v=NZKxFWJyynY
sobra-me dobrar a língua sobre a Deslandes, que escreveu a letra e, logo, afinal não é totalmente nula.
E sorrir com o facto que o fado do povo,
do povo de agora,
acabou de se sentar no salão.

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