Discografia DLXXXVIII Rui Veloso (que é como quem diz tio Rui e o tio Carlos Tê).

“Pai do Rock Português” uma das maiores grandes injustiças de sempre que sempre se repetem injustiçando todos os envolvidos... ao tio Rui nunca o vi tocar uma nota de rock (vá lá, uma ou duas, se falarmos de rock dos anos 50), o tio Rui sempre foi um guitarrista de blues pelo menos passível, tudo bem foi ao teste e chumbou e cagou um pé todo à frente de toda a gente (por mais que a imprensazinha nacional ainda fale da raposa como um positivo), mas a porra do teste foi do nada à estratosfera: estás muito bem na Foz e agora vai lá tocar com o B.B. King, não é nada comigo e todos os esfíncteres do meu corpo também fecharam. Indecorosa mesmo só a fajuta autoconfiança de menino fino à saída (quase 50 anos depois ainda me admiro com a impudência da classe-média-alta-nacional, deve ser uma espécie de eterna inocência só minha). Mas o tio Rui electrificou definitivamente o som pop nacional no início dos anos 80, e a confluência som-eléctrico-logo-rock deve-se mais à crónica astenia da crítica musical nacional do que a ele.

Falar do tio Rui é falar do tio Carlos. Se o Rui é uma discreta rock-star, o Carlos Tê é o mais discreto dos discretíssimos génios poéticos que este país produz a torto e a direito. Xaroposíssimos ambos, como não podiam deixar de ser dois meninos da ultra-burguesia portuense (o Rui filho do Aureliano, sobrinho do Pires), foi por lhes comprar as dores que deixei de ler o “Independente” quando no habitual estilo enfant-terrible-porque-ligeiramente-fascista se atiraram ao “sargo que assa no braseiro” do “Porto Côvo” como exemplo particularmente parvo do letrismo nacional.

A dupla de betinhos de entre a Foz e a Cedofeita com as piadinhas do “Chico Fininho” (canção sobre a heroína), o “Um Café e um Bagaço” (canção sobre o alcoolismo) e a “Máquina Zero” (canção sobre o poder do estado) mudam mesmo a pop nacional, mesmo que as pérolas da altura sejam o “Cavaleiro Andante”, o “Ladrão Enamorado” e o impossível “Porto Sentido”.

Depois veio a monstruosidade que foram o “Mingos & os Samurais”.

Há muitos discos perfeitos: discos em que todas as músicas são perfeitas e o conjunto das músicas constituem uma perfeição que dalguma maneira ultrapassa a soma das perfeições individuais das canções. Há um monte de discos perfeitos feitos em Portugal e um molho absolutamente respeitável produzido no meu tempo de vida (consistentemente aqui o canto da península produz poesia e gastronomia, 2ª metade séc. XX, inícios séc. XXI demos muita música)... ouvi-o todo nas maquinetas de ouvir discos em pé da Valentim de Carvalho na altura e a seguir saí da loja com o vinil (duplo) debaixo do braço. Francamente neste não sei sequer o que apontar... Fugindo aos esmagadores “O Prometido É Devido” e “Não Há Estrelas No Céu” e “A Paixão (2º Nicolau da Viola)” (se achas estes monstros ligeiramente demasiado hoje, imagina há 35 anos atrás, quando não escolhíamos o que ouvíamos na rádio, e levámos com eles ininterruptamente durante 2 ou 3 anos seguidos... sem sequer a justificação de serem músicas de merda que a indústria nos queria fazer engolir e que passados 2 meses ninguém se lembrava).

Francamente o “Mingos &...” é uma cena tão fundadora no puxar do meu gosto musical... o tio Rui dessnobizou-se-me o gosto, mostrou-me (acima da Madonna e do Michael Jackson) o brilho da pop... e a porra do disco no fundo no fundo é perfeito, escolher é escolher entre filhos... o “Irmãos de Sangue”,O Que Eu Quero Ser Quando For Grande” matou a possibilidade de eu ter “uma carreira”; “No Dia da Comunhão Solene” é o retrato do catolicismo deprimente da minha infância; o “Twist É Sedução I” é a libertação desavergonhada, falsa autoconfiança do desespero para perder a virgindade dos meus 16 anos; a “Conceição” é a minha pontaria para descobrir lume, lenha de arder; o “No Extremo do Salão” a assunção da minha misantropia, o agradecimento cósmico por viver num tempo em que (de vez em quando) se permite a agência às mulheres; o “Mago do Bilhar” é um programa para se ser... luz, classe e estilo; o “Sámapatti” o reconhecimento do seu contrário: anjos ébrios no céu, percorremos o soalho como dois contorcionistas, deixa que a música te tome, a gente vai rebolar até a pele queimar, foi tamanha a mistura, perdi-me na tua cintura (nunca o Tê fez tanto tão curto!!); “A Gente Vai Na Digressão” provavelmente o mais honesto poema musicado de sempre em português; o “Fio de Beque” chega-lhe ser uma música brilhante que, pelo menos eu, vou dançar até ao fim dos (meus) dias; “Morena de Azul” a minha fatal queda com a tua irmã, tudo o que os rapazinhos identificam (correctamente) como problema (leiam-se inenarrável mau-feitio e infindável intelecto) que a mim se me cai como atractivo “e uma vez que se lá entre não se pode vir embora...”; o “Baile da Paróquia” maravilha de edição, ENORME retrato da masculinidadezinha-tóxica-corriqueira-do-dia-a-dia e proposta (já vi pior em tribunal) para correcção se não social, pelo menos personalizada, do problema; “No Dia em que o Meno Rock Morreu” a atracar esta enorme ópera-rock à época que retrata; “Um Trolha d’Areosa” é só a “Morena de Azul” do ponto de vista contrário, é só exibição do Tê... “rezei por ti, longas novenas sem fim, para voltares, inteirinho e sem mazelas, mas ficaste por lá, tão perdido no capim” o Tê escreve o grande poema sobre a Guerra Colonial (nem falo do “prometeste que me levavas a Lisbo oo oo oo oaaa”).

Depois disso não acabou, o tio Rui ainda lá está: o “Lado Lunar” (“mostra-me o avesso da tua alma / conhecê-lo é tudo o que eu preciso / para poder gostar mais dessa luz falsa / que ilumina as arcadas do teu sorriso”), o “Jura” provam-no... mas em rigor nem é preciso. Fosse eu o administrador do condomínio que é o Panteão e já o tio Rui tinha campa aberta (a lei diz que há que esperar x anos para propor “panteazição” do defunto, eu acho o contrário; cinco anos anos antes de fecharem os olhos: Gageiro já! Matos Gomes sem stress, Mª Teresa e Adília e Olga só porque eram um elogio a nós próprios, Mísia, Fausto (eu afogava os Braganças e cardeais-patriarcas em poetas), Cargaleiro claro, a Margarida Tengarrinha e o Mattoso, a Paula Rego, a Rosa Ramalho, a Eunice, o Cutileiro, o Cruzeiro Seixas e o Pomar necessariamente, o Otelo e o Zé Mário só para arranjar merda.

Viver cá não é simples, mas às vezes quase que parece que vale a pena; imagina ser ianque e nem desconfiar de quem sejam o Veloso e o Tê,

que tristeza.


 

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